Cotidiano

Artista plástico suíço cria churrasqueira que é uma obra de arte

2016 911947145-feuerring_tulip.jpg_20160525.jpgLUCERNE, Suíça – Van Gogh tinha crises depressivas que se refletem em muitos de seus quadros. Dizem que o alcoolismo e suas tentativas de superar o vício foram decisivas na produção genial de Pollock. Portinari se dedicou aos desenhos depois que tintas usadas nas pinturas passaram a intoxicá-lo. No caso do suíço Andreas Reichlin, o que levou à criação de uma obra-prima foi algo mais prosaico. Apreciador de comida preparada na brasa, o artista plástico enfrentava problemas digestivos sempre que saía de um churrasco com amigos. Para ele, surgia da fumaça e da gordura, e do vapor que retornava encobrindo o alimento, o monstro que revirava suas entranhas.

Reichlin poderia ter entregado os pontos ali e se rendido a uma dieta vegetariana. Mas o prazer da carne não é assim fácil de se abandonar. Lançando mão do talento de escultor e da habilidade em manipular madeira, pedra e ferro, decidiu criar sua própria churrasqueira. Ter as palavras ?escultor? e ?churrasqueira? numa mesma frase pode soar estranho, mas foi justamente desta improvável combinação que nasceu a Feuerring, anel de fogo, em tradução livre do alemão. Mais do que um objeto que permite cozinhar com brasa, o gigante bowl de aço é uma obra de arte que poderia estar num dos jardins do Instituto Inhotim, em Minas Gerais, ou no quintal da casa da Coleção Peggy Guggenheim, em Veneza, na Itália.

Elegante, sensual, surpreendente e singular são alguns dos adjetivos costumeiramente associados à peça que Reichlin levou quatro anos para aprimorar, desde que começou, em 2005, a busca por uma solução para o problema que maltratava seu estômago. Vários protótipos depois, enfim chegou ao formato que, para ele, é a mais perfeita tradução da tríade ?forma, função e qualidade?. Materializava-se assim uma obra que une design e funcionalidade, talento para escultura e paixão por gastronomia. Mais: tal qual planejara, a nova criatura se vale dos quatro elementos essenciais da natureza ? água, terra, fogo e ar. Muitas ideias foram abandonadas no meio do caminho. Uma peça quadrada chegou a ser pensada, mas seu alto custo contribuiu para chegar ao modelo circular que se tornou definitivo.

2016 913546516-img_8020.jpg_20160602.jpg? Não deu certo com o formato quadrado, por conta do valor. Sairia muito caro ? conta.

Desde então, Reichlin aprimorou a invenção, criando toda uma família de Feuerring, com peças que mantêm a ideia de anel de fogo, mas se diferem na proporção. O modelo básico tem um metro de circunferência por 23 centímetros de altura e pesa cem quilos. O que ganhou o nome de Tulip mede 1,10 metro, com 50 centímetros de altura e 150 quilos. As mais larga e pesada, a Gastro, chega a 1,32 metro e 250 quilos. Reichlin brincou com altura e peso nos dez tipos disponíveis para comercialização, o que faz variar também os preços das obras, que começam em 3,7 mil francos suíços (cerca de R$ 13 mil) e vão a quase nove mil francos suíços. A circunferência também muda, mas não pode ter menos de um metro. É ela que define uma parte fundamental da peça, a placa que serve para cozinhar pratos em suas mais infinitas combinações. E a chapa esquenta à medida que se acende o carvão disposto no centro da Feuerring.

? Abaixo dessa medida, elas não funcionam ? diz, enquanto apresenta todas as variações de Feuerring dispostas sobre um tapete de pedrinhas, na entrada da casa-ateliê onde vive e cresceu, à beira do Lago Zug, a 20 minutos de Lucerna.

A frustração de não ter espaço em casa (e no orçamento) para ser dono de uma delas pode ser remediada: na estrutura que a Suíça está montando na Lagoa, e que será sua casa-sede durante a Olimpíada do Rio, quatro Feuerringe servirão de palco para um chef exibir suas habilidades.

Tatuagens pelo corpo e alargador na orelha, o chef Chris Züger, de 31 anos, desembarca no Rio para uma nova temporada. Foi ele quem comandou a cozinha da House of Switzerland na Copa do Mundo de 2014, lugar que logo ganhou dos cariocas o apelido de Baixo Suíça. A casa volta a ser montada agora, com uma estrutura maior. Vai ser às margens da Lagoa, na altura do Corte de Cantagalo, que o chef vai demonstrar sua engenhosidade com a Feuerring. Não são poucas.

2016 913543982-7k6a4705.jpg_20160602.jpgEm uma noite linda e gélida de maio, Reichlin abriu as portas de sua casa para receber um grupo de jornalistas brasileiros, amigos suíços e parceiros de empreitada. O chef Züger estava lá, comandando uma equipe que criava, em duas Feuerring, iguarias das mais diferentes. De entrada a prato principal, de frutos do mar a legumes, tudo era feito na brasa, à vista de todos. O preparo em si já é um espetáculo, com os ingrediente colorindo a borda da churrasqueira. Se a Feuerring já se mostrava fotogênica mesmo ?desligada?, solta num jardim, quando ela está acesa, com a brasa ardendo em seu interior e os alimentos cozinhando na chapa, fica ainda mais bela. Além de elegantes na composição, com sua pegada de cozinha internacional, os pratos de Züger chamavam a atenção por um detalhe: eram servidos numa plaquinha de madeira que, depois de usada, podia ser jogada dentro da churrasqueira e servia para manter a chama acesa. Prático e, por que não?, ecológico.

? A Feuerring ajuda a estimular a criatividade ? elogia o chef. ? As possibilidades de pratos são grandes quando se usa uma delas.

? E não é preciso esperar por uma temperatura ideal, depende do que a pessoa quer preparar nela ? completa Reichlin. ? Aliás, ela melhora com o uso. Não tem aquele ditado que diz que panela velha é melhor? Com a Feuerring também é assim, ela melhora com o uso. E ajuda a se alimentar de forma mais saudável.

Ali foi possível perceber ainda outra função que a Feuerring pode assumir. Ela faz as vezes de lareira com charme e perfeição, o que não deixa de ser útil num país frio como sua terra natal. Na tal noite de maio, com garoa caindo e vento gelado vindo do lago, ficar perto de uma delas era providencial. O clima era de sarau, com a presença do cantor Marc Sway. Filho de pai suíço e mãe baiana, ele se tornou ainda mais conhecido em seu país por ter participado como jurado do programa ?The Voice?, e deu uma canja no final da noite, cantando em inglês e português. O time de celebridades locais tinha ainda o esgrimista Max Heinzer, vizinho do dono da casa e que adora pescar no lago em frente. Em suas fotos no Facebook, gosta de mostrar que é tão hábil com a espada como com o anzol. No material de divulgação da Feuerring, aliás, Heinzer aparece limpando e preparando o pescado numa delas. Não deixa de ser um bom garoto propaganda. Em tempo: o cantor e o atleta, que estará em busca de medalha nos Jogos Olímpicos, são presenças confirmadas no Baixo Suíça em agosto.

O criador da Feuerring e sua mulher, Beate Hoyer, recebiam a todos em clima de festa de amigos, mostrando in loco que a escultura tem a vocação que ele tanto apregoa: ajuda a socializar, funcionando como uma mesa de refeições redonda, mas com a inegável vantagem de, literalmente, aquecer o ambiente.

? E a arte é sempre para ser usada ? defende Reichlin.

Ele criou uma empresa para tocar o negócio, mas faz questão de ter parceiros, para assegurar tempo livre para continuar sendo artista. Com isso, tem showrooms em outros países da Europa e lançou este ano, com chefs como Judith Gmür-Stalder, um livro de receitas em dois volumes em que a Feuerring é a estrela.

De fato, fotogênica ela é.

*O jornalista viajou a convite da Presença Suíça, do Departamento Federal de Assuntos Exteriores (DFAE)