Cotidiano

Artigo: Um sol fundamental

A cultura pop vai fazer 60 anos. É natural que seus heróis comecem a morrer em conjunto. A morte de David Bowie parece ter sido um início de uma sucessão de partidas que foi dele até a sequência Carrie Fisher/Debbie Reynolds, mãe e filha, ?Star wars?/?Cantando na chuva??. Um círculo exato. A tendência é que cadernos de cultura se tornem um grande memorial? Porque neste ano também teremos que lembrar e homenagear o aniversário de morte de Leonard Cohen, Muhammad Ali, Prince, George Michael, numa lista que parece não ter fim.

Mas só parece. Porque o que na verdade nos choca é que a lista dos heróis aparenta mais ter fim do que ser infinita. A partida de David Bowie e a lacuna cristalina deixada acendeu este alarme. Tudo bem um artista morrer. Somos humanos e feitos para isso. Mas não vermos um outro Bowie, um outro Ali, uma outra Elke Maravilha no horizonte é assustador. Mas há razão para susto?

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Daqui a 50 anos teremos grandes artistas vivos? Ou terá na verdade terminado a era dos grandes artistas da cultura pop? O jazz não se ressente de nunca mais haver nascido um Charlie Parker para ocupar o lugar de Charlie Parker. O teatro não se ressente de nunca mais ter aparecido um Pirandello. O cinema não se importa de não haver mais gênios como Hitchcock. Não há um novo Renoir. Não há um novo Garrincha.

Mas nos esbaldamos felizes com seus legados. Felizes. É dito que desde o início dos tempos buscamos a imortalidade. As ciências exatas estão cada vez mais obcecadas com o tema. E esquecendo que as ciências humanas já resolveram a questão. Shakespeare só morreu para uma pessoa: o próprio Shakespeare, que não está mais aqui para ver montagens de suas peças. Para todo o resto da Humanidade, está mais vivo do que quando de fato viveu. Imortal, Bowie deve ser é celebrado. Não, os cadernos de cultura não se tornarão grandes obituários, e sim fundamentais espaços de perpetuação de legados. Até porque esse fim da era dos grandes artistas é, na verdade, a oportunidade de se libertar e se celebrar o artista cotidiano, ou a arte que acontece todos os dias e em todos os momentos, de finalmente estarmos livres para nos atermos à poeira de estrelas ? um mundo possivelmente até mais rico do que o dos grandes astros que, sem querer, eclipsam tudo à sua volta. Uma era sem sombras. De luz em tudo quanto é lugar. Iluminada por mil sóis.

Bowie é um destes sóis no céu agora. 2016 tocou a trombeta da ascensão de estrelas-guia em nossas vidas. Virão mais por aí. Estamos precisando. Em todo o mundo, uma era obscura já se anuncia há alguns anos. Artistas estão sendo chamados de vagabundos. Arte, de desnecessária. Direitos humanos, de um atraso. Cada vez menos livros e instrumentos musicais são vistos na casa das pessoas.

Precisamos urgentemente de deuses que tenham vivido uma vida que, como a de David Bowie, nos lembre do segredo (nada exato e muito humano) da imortalidade.