Cotidiano

Artigo: O que minha mãe vê em Hillary?

WASHINGTON ? Em 1973, o primeiro marido de minha mãe morreu em um acidente de carro no centro de St. Louis. Meu irmão, Jason, tinha nove meses. Em rápida sucessão, ela sofreu várias perdas: o pai de seu primeiro filho; o acesso a um cartão de crédito; o seguro do carro; a possibilidade de fazer financiamento bancário. A primeira foi uma tragédia terrível; as outras aconteceram porque era solteira ? com um filho, para piorar ?, eram os anos 70 e, como ela mesma diz: “Na época, mulher só era considerada capaz se tivesse um homem na sua vida.”

Quatro décadas depois, minha mãe está empolgada pela chance de votar naquela que espera ser a primeira presidente mulher deste país. Um ano de diferença a separa de Hillary Clinton. E embora suas experiências sejam tão diferentes das minhas, servem de lembrete constante do esforço de Hillary para chegar aonde está hoje e a força das atitudes da sociedade em relação à mulher e seu valor, contra a qual vem brigando há tanto tempo.

Minha mãe me contou como foi o dia em que recebeu o telefonema avisando do cancelamento do seguro do carro. Por causa do acidente do marido, a companhia simplesmente o suspendeu. Mesmo naquela época, a medida não era legal, mas foi o que aconteceu. Ela entrou em pânico, chorou, implorou. Sem o seguro não poderia dirigir em segurança e, consequentemente, não poderia conseguir um emprego. Ligou para outras três empresas até que, finalmente, falou com um corretor de bom coração, o mesmo, aliás, que usa até hoje. Ele a aconselhou a entrar no carro e seguir, com o máximo de cuidado, até a sede da empresa para ver o que poderia fazer.

Ela conseguiu o seguro ? o que significava que poderia chegar ao trabalho, se tivesse um. Antes da morte do marido, ela cuidava de Jason durante o dia e fazia um curso noturno para conseguir o diploma do ensino médio. Entretanto, precisava de uma renda e quando chegou à última rodada de entrevistas em um departamento de pesquisas da universidade local, começou a se sentir esperançosa.

Na última entrevista, o gerente contratante disse que, apesar de minha mãe ter excelentes qualificações, iam dar a vaga para o homem. Afinal, ele tinha uma família para sustentar.

“Mas eu também tenho um filho pequeno”, ela retrucou.

“Bom, ele tem mulher e filho. A vaga é dele”, o homem respondeu.

Ela já tinha trabalhado nos laboratórios da universidade antes, por isso quando uma amiga falou da vaga em meio-período, com um médico jovem, agarrou a chance com as duas mãos, mesmo precisando de um emprego em período integral.

O rapaz flertava com ela ? que, por sua vez, era supereducada. Aos 24 anos, sabia que a dinâmica de poder da situação não lhe permitiria reclamar de nada.

Parte do trabalho incluía usar um microscópio eletrônico para examinar espécimes em uma sala escura, trancada por dentro, para evitar que alguém entrasse e estragasse tudo com um facho de luz. Um dia, ela e o médico estavam usando o equipamento juntos, o que era até comum ? mas quando ele lhe perguntou se sabia onde podia conseguir maconha e ela disse que não tinha a menor ideia (minha mãe foi a única pessoa a viver nos anos 70 sem ficar chapada), ele não acreditou. E agarrou sua coxa, murmurando-lhe coisas vulgares no ouvido.

O choque a fez sair voando da sala. É claro que não havia a quem reclamar. Dois dias depois, foi demitida.

Uma vez foi comprar um sofá a crédito. O vendedor perguntou: “Qual a renda do seu marido?”.

“Sou viúva”, foi a resposta. Segundo a política da loja, ela só poderia comprar alguma coisa se informasse a renda do marido. “Mas sou viúva”, repetiu.

“Tá, mas quanto ele ganhava?”

Assim que informou o valor do salário mensal do marido morto, o sofá lhe foi vendido.

Outro dia estava conversando com ela por telefone e perguntei o que achava das eleições.

“Sempre gostei da Hillary”, ela respondeu.

Pela primeira vez na vida, minha mãe vê alguém com quem se identifica com grandes chances de se tornar presidente. Hillary Clinton, durante sua carreira política, comprou muitas brigas pelas mulheres, incluindo a luta incessante pelos direitos reprodutivos, além de ser a voz de muitas mulheres e meninas quando era Secretária de Estado.

Em um debate aberto, há alguns meses, um jovem lhe perguntou por que ela achava que os jovens não se entusiasmavam por sua candidatura.

Pareceu meio ofendida, mas tentou explicar que, durante muitos anos, foi a “do contra”. Apesar de todas as críticas, depois de várias décadas de vida pública, a única coisa que lhe resta a fazer é defender suas posições.

Penso na minha mãe e nos obstáculos que ela enfrentou como mãe solteira. Mesmo assim, conseguiu pôr um pé na frente do outro, devagar, conseguiu trabalhar e se dedicou como pôde a não perder o emprego ? até que, finalmente, entrou na faculdade.

Ela sobreviveu aos anos 70. Aproveitou a época da Ms. Magazine e acompanhou o movimento de libertação feminino. Conheceu meu pai, que adotou Jason e o amou como se fosse seu. Construíram uma família juntos e meu pai lhe deu a maior força para que se formasse, mesmo criando quatro filhos.

Decisões políticas e opiniões são pessoais e têm uma grande carga emocional, talvez muito mais que prática. Nossa identidade está ligada à escolha dos candidatos em toda e qualquer eleição. “Essa pessoa me representa.” Não há o que explicar sobre o fato de Hillary ser a minha candidata. Para mim não conta só a questão da brigar pelas mulheres, mas também a imensa experiência que tem de governo, incomensuravelmente maior que a do outro candidato.

E é claro que adoro essa característica sua de ser a sobrevivente. Superou ataques incessantes. Deve ser extremamente cansativo, mas ela não se abala. Já foi chamada de megera, de bruxa e caracterizada como Lady Macbeth. Ela esganiça, ela grita, ela late. Não impressiona, não é simpática e não estimula a base. Às vezes, acho que muita gente neste país ainda tem medo de ver uma mulher no poder; eu estou mais que pronta.

Quando minha mãe ainda era solteira, as pessoas comentavam seu estilo de vida com uma frequência alarmante. Por que não morava com os pais? Não tinha medo de o filho crescer e virar gay se não se casasse de novo? Sua senhoria foi lhe falar, logo depois que o marido morreu, toda cheia de dedos, afirmando que sentia muitíssimo, mas que também esperava que ela se mudasse logo para ficar mais perto da família, o que provavelmente seria melhor para todo mundo.

Bom, minha mãe não se deixou levar. Sorriu, educada, mordeu a língua e fez o que tinha que ser feito para sobreviver à intempérie daqueles anos.

Parece alguém que você conhece?

Elizabeth Word Gutting é escritora e vive em Washington