Cotidiano

Artigo: No desespero da Venezuela, Deus não ajuda ninguém

VENEZ_WOES_5.JPG-970.jpg

CARACAS – ?Yo no creo en nadie? (Não acredito em ninguém). A frase já se tornou parte do vocabulário venezuelano. Ficou famosa, em parte, graças a um chefe de gangue adolescente que apareceu se exibindo e brandindo uma arma no YouTube e morreu antes de completar 19 anos. Geralmente a expressão era usada por impulso pelos venezuelanos, como uma piada, o lema da nossa típica indiferença bem-humorada às autoridades. Não acreditamos em ninguém.

venezuela

Um vídeo mais recente, também feito na Venezuela, abre com um homem na rua, se contorcendo de dor. Seu rosto e parte do corpo estão em chamas. Os cães latem e o trânsito segue. Um pedestre passa e parece não ver a figura à sua frente. “Isso é para você aprender a não roubar dos outros!”, diz o homem por trás da câmera. O homem que está sendo queimado é um ladrão. O castigo, aplicado pelos companheiros, é só um entre os quase 40 casos de linchamentos registrados este ano no país. O povo está fazendo justiça com as próprias mãos ? porque também não acredita em ninguém.

O pessoal da minha geração, nascido entre as décadas de 80 e 90, foi criado para acreditar em duas coisas muito importantes: que somos um país rico e que tínhamos uma das democracias mais estáveis da América do Sul. Hugo Chávez, presidente de 1999 até sua morte, em 2013, fez seus seguidores acreditarem que o socialismo bolivariano que instituíra era o caminho para a dignidade. Investiu bilhões de dólares ganhos com a venda do petróleo nos pobres, criando uma ilusão de crescimento e inclusão, pelo menos por um tempo. Cinco anos atrás, ninguém teria acreditado que a fome se tornaria parte do dia a dia da maioria dos venezuelanos; hoje, só o que basta para confirmar essa triste realidade é olhar pela janela.

Tem um vendedor de leite que faz entregas nos restaurantes do bairro onde moro. Quando sobra algum, ele vende, direto do caminhão estacionado na rua, para a pequena aglomeração sombria ? gente idosa que começa a formar fila antes de o dia clarear. Atualmente, ele tem aparecido cada vez menos. A cena triste termina com os clientes frágeis indo embora de mãos vazias, depois de horas de espera. Sei quem são porque reconheço a forma solene de se afastar e as lágrimas de frustração.

Não faz muito tempo, uma mulher que trabalha em um salão de beleza perto daqui decidiu sair para o trabalho um pouco mais cedo que o normal para encarar a fila do leite. De acordo com o programa do governo, sua “vez” de fazer compras seria na sexta ? mas ela desistiu da visita semanal ao supermercado não só porque trabalha nesse dia, mas também porque morre de medo de ter uma arma apontada para a cabeça pelos assaltantes que ficam esperando na porta por aqueles que saem com algo nas sacolas. E me contou que a neta de oito meses não toma fórmula infantil há meses. Está preocupada com a qualidade do leite materno, pois a mãe da criança só tem pão e miojo para comer.

Nosso prefeito chegou a comentar que os cães de rua estão praticamente desaparecendo e que as pessoas estão caçando pombos na praça principal.

Tenho sorte de ir para a cama, à noite, sem ouvir a barriga roncando. Tenho acesso a dinheiro vivo, que uso para comprar produtos no mercado negro, a preços exorbitantes. Toda vez que viajo para o exterior, trago a mala cheia de arroz e outros grãos. A maioria dos venezuelanos não encontra os alimentos que procura e, quando isso acontece, não tem condições de comprá-los. Porém, esses episódios diários de desespero me fazem temer pelo que o dia trará e as histórias de sofrimento não me deixam dormir.

Nós, venezuelanos, sempre conseguimos driblar a adversidade com bom humor. Em 2012, quando a inflação e a pobreza começaram a despontar sob o manto do socialismo bolivariano, Chávez fez uma rara admissão pública dos erros cometidos por seu governo; disse que não era importante não ter energia elétrica ou água, contanto que tivéssemos a pátria. A frase “Pero tenemos patria” (Pelo menos temos pátria) se tornou uma maneira cínica de zombar da agenda governista, totalmente fora da realidade, toda vez que nos deparávamos com um exemplo de deterioração da qualidade de vida. A frase foi substituída por outra desculpa, ainda mais absurda, que também virou piada: “Dios proveerá” (Deus nos ajudará), frase pescada em um discurso do presidente Nicolás Maduro, em 2015.

?Yo no creo en nadie? perdeu a graça para se tornar o credo daqueles que não mais acreditam no Estado como provedor de justiça e segurança. A frase expõe o sentimento de traição dos venezuelanos confiantes em um governo que ganhou as eleições distribuindo esmolas em detrimento da nossa democracia, nossa economia e o estado de direito. É o testemunho de um governo que jurou dar ao povo dignidade à custa das instituições que existiam para garanti-lo.

Hoje, Maduro insiste em impedir que os venezuelanos que buscam um regime pacífico mudem a situação através de um referendo. Está tentando destruir a crença que temos algum poder de decisão sobre nosso futuro. Tem até quem se rendeu à ideia da possibilidade de um golpe porque qualquer coisa é melhor que a situação atual. A impressão é a de que o governo quer que o povo não acredite em nada.

(Emiliana Duarte é a editora-chefe do Caracas Chronicles, um portal venezuelano de notícias.)