Cotidiano

Após a Flip, Karl Ove Knausgard conta que nunca planejou escrever tanto

RIO ? É bem verdade que o jovem Karl Ove Knausgård sonhava em ser escritor com toda a liberdade, as festas e o glamour que a profissão prometia. Mas o norueguês pareceu sincero ao afirmar que jamais esperava que um livro sobre sua conturbada relação com o pai fosse virar ?Minha luta?, série de seis livros, com mais de 3 mil páginas escritas, sucesso no mundo inteiro. Atualmente no quarto volume, ?Uma temporada no escuro?, Knausgård agora narra sua pós-adolescência, quando dava aulas numa escola de uma cidadezinha no norte de seu país. Após participar da 14ª edição da Flip como um dos principais nomes convidados, o escritor veio ao Rio para a série Encontros O Globo, ao lado do repórter Leonardo Cazes.

? Eu havia escrito dois romances antes, que foram bem na Noruega, quando meu pai morreu. Eu tinha 29 anos, tinha uma relação muito difícil com ele, que era alcoólatra. Às vezes eu o odiava e queria que ele morresse. E quando voltei à casa dele, percebi que deveria escrever sobre isso. Sobre vida e morte, meu pai e eu. Era para ser um pequeno romance, mas que cresceu demais, e já faz dez anos que estou nisso. Se eu soubesse que ficaria desse tamanho, eu jamais teria começado ? brincou ele, para um público atento que lotou a Livraria da Travessa, no Shopping Leblon.

A série, que é totalmente autobiográfica, e que inclusive usa nomes e personagens reais, foi uma tentativa de Knausgård de ser livre.

? No começo foi difícil escrever de maneira verdadeira sobre mim, mas conforme fui escrevendo, foi ficando mais fácil. Eu queria contar como é ser um homem, mas como é de verdade, não queria esconder nada. Eu tinha uma auto-estima muito baixa. Mal conseguia me comunicar porque tinha medo de soar bobo. Na literatura, eu me sentia livre, porque eu estava sozinho ali, não tinha mais ninguém ali comigo. Todo mundo tem seus segredos e o romance é a melhor forma de explorá-los ? conta o autor, que nunca deixou de fazer nada pensando em como relataria isso nos livros, mas que, sim, omitiu algumas passagens. ? Eu era muito ingênuo, não percebi que teria tantos leitores. Eu estava sendo livre, não pensei nas consequências, com exceção do meu irmão, somos muito próximos, ele sempre me ajudou, sempre esteve ao meu lado. Então contei sobre vezes que senti vergonha dele, e fiquei culpado, porque eu não queria que ele soubesse. Ele leu um manuscrito, disse que ficou com raiva, mas que aquele era meu livro, e aceitou. O resto da minha família ficou muito brava, ameaçou me processar, falou mal de mim nos jornais? Eu não achava que ninguém ia ler os primeiros dois livros, mas eles receberam muita atenção na Noruega, então o três, o quatro e o cinco eu escrevi com mais cuidado. Mas no sexto eu senti que deveria ser sincero e brutal novamente.

A liberdade, segundo Knausgård, também passa pela questão da identidade:

? Estou interessado em identidade, esta é a minha maior questão: quem eu sou e como eu me tornei essa pessoa. E dentro desta questão, a identidade nacional e a identidade sexual são muito importantes, são uma grande parte do que nós somos ? conta ele, que narra suas tentativas de perder a virgindade aos 18 anos de idade. ? Quando eu era criança, escrevi um livro e ele era muito “menininha”, sobre gostar de flores e vermelho, e eu era muito zoado pelos amiguinhos, o que é muito cruel. Isso mexeu muito comigo. Eu me vi parado na frente do espelho tentando parecer mais masculino. Eu gosto de investigar o que é ser um homem nos meus livros, e muitas mulheres aqui no Brasil me disseram que eu escrevo como uma mulher, talvez por ser muito sensível.

Ele, que dedicou o primeiro livro da série ?Minha luta?, ?A morte do pai?, a contar sobre sua relação com seu progenitor, conta ter aprendido mais sobre o pai e sobre a paternidade com o exercício da escrita.

? Toda literatura tem um elemento autobiográfico. É muito difícil dizer o que é vida e o que é literatura, não tem como você escrever uma frase sem sua experiência pessoal. Lembro de achar que eu não deveria ter filhos. Meu irmão teve filhos antes de mim e era um bom pai, então vi que eu poderia ser um bom pai. Ao escrever sobre meu pai, eu o compreendi, e tentei perdoá-lo. Ele era muito jovem e caótico quando teve filhos. Quando escrevi esse, livro amigos de infância do meu pai me escreveram contando que ele teve uma infância difícil, apanhou muito, ficou traumatizado, muitas coisas que eu não sabia antes. A vida é complicada. Quando você tem um filho, você comete erros, você aprende a melhorar e a se perdoar.

Ah, sim, para quem se perguntou, a escolha do título da série ?Minha luta? teve a ver com aquele outro livro, ainda mais famoso e polêmico, escrito por Adolf Hitler.

? Escolhi esse título deliberamente, queria que associassem. É um título simples, e eu realmente falo sobre minha história, minha luta. Eu só fui ler o livro de Hitler depois. O meu é sobre vida e literatura, e o outro é sobre maldades. Mas pedi para um amigo comprar para mim, não tinha coragem. Levei esse livro para a Islândia, e fiquei com medo de tirar da mala no aeroporto porque eles podiam achar que era um fascista, um terrorista querendo derrubar um avião. Você não pode ler esse livro em público. Que fique claro que eu nunca flertei com o nazismo, só queria entender o que ele pensava ? conta ele, que acha este tipo de leitura necessária ainda mais em momentos de nacionalismo exacerbado, como o que vive a Europa. ? Muita coisa tem acontecido na Europa e temos que lidar com elas, precisamos humanizar essas pessoas para tentar entender como isso é possível. Vocês (os brasileiros) deveriam publicar e incentivar a leitura desse livro. Ninguém vai se tornar um nazista por isso, é impossível. Um motivo é porque ele é extremamente chato. Você vê esse homenzinho com ideias estúpidas, você pode vê-lo, ouvir sua voz e falar ?isso não é bom?.