Cotidiano

'Antes que tudo acabe': Renato Rocha leva teatro brasileiro à Escócia

RIO ? O brasileiro Renato Rocha já tinha levado seu trabalho para fora do Brasil há sete anos quando, em uma noite de 2015, foi apresentado a Simon Sharkey, diretor associado do Teatro Nacional da Escócia (NTS). Com formação no grupo Nós do Morro, a carreira de Renato sempre esteve ligada à expressão que nasce do cruzamento entre o olhar artístico e as vivências reais de quem normalmente não tem suas histórias contadas pelas grandes produções. Sharkey, por outro lado, desde 2006 vinha promovendo o encontro de artistas com as mais diversas comunidades escocesas, produzindo espetáculos direcionados a plateias de 3 a 12 mil espectadores. Do encontro entre os dois em um típico pub inglês surgiu a vontade de trabalharem juntos, projeto concretizado com ?Antes que tudo acabe?, em cartaz desde 1º de setembro até o próximo dia 25 na arena do Sesc Copacabana.

Criado em parceria com artistas egressos de diferentes projetos artísticos espalhados pelo Rio de Janeiro, como Nós do Morro, Favela em Dança, Centro de Artes da Maré, Armazém da Utopia e Kabum, o espetáculo segue em outubro para Glasgow, onde se apresenta no festival ?Home away?. A primeira mostra internacional organizada pelo NTS é uma celebração dos dez anos da companhia, que, em seu primeiro ano de existência, organizou um festival com o tema ?Home?, ou ?lar?. O ?away? acrescentado ao título da edição de 2016 faz a ponte do país integrante do Reino Unido com o resto do mundo. Além de cinco companhias escocesas, outros cinco espetáculos vindos do Brasil, Estados Unidos, Jamaica, Índia e Austrália vão participar da programação, que inclui apresentações, sessões para intercâmbio de experiências entre os artistas, aulas magnas e workshops voltados para os políticos locais.

? Queremos que eles venham ver o trabalho, escutem as vozes e discutam as questões que essas obras vão levantar. Com um diálogo mais próximo, os legisladores podem nos ajudar a conseguir mais recursos para engajar as comunidades na criação de suas próprias narrativas ? explica Sharkey.

Sem contar com um edifício teatral ou um elenco fixo, o NTS funciona como um polo aglutinador, atuando como coprodutor de um número variável de espetáculos por ano (de 6 a 26, segundo o diretor). Desde sua fundação, o princípio orientador é que o teatro nacional possa refletir a variedade de produções de todo o país. Sem paredes ou regras, a companhia busca ultrapassar as fronteiras e definições do que é o teatro.

? As histórias das crianças nas favelas de Delhi conversam com as dos jovens nos guetos de Kingston e com as da comunidade rural escocesa: todos estão explorando as perguntas ?quem sou eu??, ?onde eu vivo?? e ?qual é o meu lugar??, ou seja, discutindo o pertencimento e as formas de se conectar ao outro e ao mundo. O teatro que surge a partir disso é incrível. Explorando o mesmo tema, esses dez grupos desenvolveram respostas muito diferentes ? conta Sharkey, que desafiou os participantes de ?Home away? a criar trabalhos inéditos a partir do tema do festival.

Veja a íntegra da entrevista:

Vocês dois veem o teatro como uma ferramenta de transformação. Mas como mostrar que, acima de tudo, o ofício de vocês é artístico, e não apenas um trabalho social?

Simon Sharkey: A ideia de que a arte pode transformar a sociedade é antiga. Mas, na verdade, o que fazemos é reconhecer a originalidade das histórias e as possibilidades das vidas que não costumam ser exploradas artisticamente. Colocar histórias reais no palco, atuar para plateias diferentes é tão rico. Que a arte transforma vidas já é fato notório, não precisamos discutir isso na Escócia.

Renato Rocha: No Brasil, ainda precisamos provar isso.

SS: Bom, nós simplesmente aceitamos que é isso que acontece. O que fazemos no NTS é levar os melhores artistas para conhecer as comunidades, não necessariamente para ir lá transformar vidas ? isso seria muito pretensioso ?, mas para se envolver, dialogar e criar juntos uma obra de arte.

RR: Aqui, a cultura produzida pelas classes menos favorecidas ainda é estigmatizada. Por outro lado, ainda agimos como se nós estivéssemos dando voz a eles, os ?coitadinhos?.

SS: Só que nessas comunidades se faz uma arte muito potente!

RR: Pois é, mas, no Brasil, ainda precisamos quebrar as barreiras para que essas pessoas tenham acesso aos mesmos recursos disponíveis para profissionais. Em Londres, trabalhei com um orçamento de ? 250 mil, então, é claro, eu podia oferecer mais estrutura para que o elenco desse o seu melhor. Aqui, temos que contar com nossa criatividade e capacidade para fazer arte com o que temos disponível. Fala-se em dar voz e espaço, mas não se oferecem os recursos e condições de acesso para a formação de cidadania.

SS: Muitas vezes, é daí que vem a inovação. Não que restringir os recursos seja uma boa coisa, mas assim encontramos novas maneiras de nos comunicarmos. Por isso, é preciso continuar investindo de forma contínua e progressiva, pois você estimula a inovação e novas formas de envolvimento da plateia. Se você investe somente na mesma forma de arte, ela acaba morrendo, e se torna uma peça de museu.

RR: Em um espetáculo que fiz com o Nós do Morro, coletamos histórias vividas pelos atores e que, na opinião deles, poderiam ser universais e acontecer em qualquer favela do mundo. Tantas pessoas da comunidade foram assistir! Os traficantes também foram, deixando as armas do lado de fora, claro (risos). As pessoas precisam se reconhecer, sentir que a cidade pertence a elas também, e poder ver uma peça na própria comunidade delas, sem precisarem se deslocar. E para isso, não precisamos necessariamente do edifício teatral. Por isso, gosto muito do conceito do NTS de ser um teatro sem paredes, mostrando que todo local pode ser um palco.

SS: Eu sou escocês, então sou suspeito, mas acho a Escócia um dos lugares mais interessantes para se fazer teatro e arte no mundo, justamente por causa do nosso teatro nacional. Não procuramos definir a nossa nação, mas exploramos que nação é a Escócia de maneira muito pessoal, encontrando pequenas histórias que são completamente universais. Atualmente, temos muitos debates acontecendo lá, com os referendos sobre a independência e a saída do Reino Unido da Europa, o Brexit. Estamos o tempo todo pensando sobre como nos encaixamos na Grã-Bretanha, no continente e no mundo. Isso é um banquete para os artistas.

RR: Aqui no Rio, temos vários grupos que desenvolvem trabalhos muito interessantes. Afroreggae, Vidigal, Favela da Maré estão tentando realizar seus projetos, e todos têm dificuldade para conseguir financiar suas atividades, o que acaba enfatizando as fronteiras. Para mim, isso é um problema. Cada um criou ótimas metodologias para realizar o trabalho em seu local de atuação, porque cada um tem sua própria cultura, cada um enfrentou dificuldades diferentes, mas nós não dialogamos, não temos um evento anual que reúna essas pessoas para trocar experiências.

SS: A ideia para a criação do Teatro Nacional da Escócia veio da percepção que, se uníssemos nossas forças, seríamos mais poderosos. Conseguiríamos mais apoio para os artistas, expandiríamos a plateia, conseguiríamos mais recursos. Não éramos assim tão divididos, já mantínhamos um diálogo, mas percebemos que competíamos uns com os outros pelo mesmo público e pelas mesmas fontes de financiamento.

RR: Acho que aqui no Brasil, precisamos colocar a palavra ?social? um pouco de lado. Não é um trabalho ?social?, e sim, profissional, pois estamos fazendo com que as pessoas desenvolvam suas habilidades de forma profissional, trabalhando junto com outros profissionais, e apresentando suas histórias a uma plateia real em um teatro real. Shakespeare dizia que a arte é um espelho do mundo, ao que o (dramaturgo Augusto) Boal acrescentou se tratar, na verdade, de espelho como o da Alice (de Lewis Carroll): se você não gosta do que vê, deve entrar nele para modificá-lo. Quando você trabalha com arte, vê a si mesmo, mas também coloca um espelho na frente do público, então todos saem transformados da experiência. É por isso que trabalhamos neste espetáculo a partir da sinceridade, sem personagens. São os próprios atores contando suas histórias. Quando você, como artista, se coloca nesse lugar de vulnerabilidade, convida a plateia a ser vulnerável também.