Cotidiano

Animações produzidas pela ex-União Soviética ganham mostra

RIO — As primeiras lembranças de Svetlana Filippova são de estar em frente à televisão. Na tela, um maestro mexia as mãos diante de uma orquestra, enquanto uma mulher vestida com roupas japonesas dançava e cantava. A garotinha russa pegou um lápis e reproduziu, várias vezes, a cena numa folha de papel.

— Agora eu entendo que estava vendo, pela primeira vez, a ópera “Madama Butterfly”, de Giacomo Puccini — diz Svetlana. — E aquele foi meu primeiro desenho de animação.

A origem da história artística de Svetlana se confunde com a de muitos outros animadores russos, que se inspiraram em várias formas de arte para produzir as obras que demarcaram a Rússia como um terreno poderoso na área. Svetlana integra o grupo de 20 cineastas que têm seus filmes exibidos na Mostra de Animação Russa, em cartaz na Caixa Cultural até o dia 29.

Não é exagero dizer que o país é um dos mais relevantes nesse gênero. Veio da então URSS a obra-prima “O conto dos contos” (1979), de Yuriy Norshteyn, eleita pelo júri de dois festivais — o Los Angeles Olympic Arts, em 1984, e o Zagreb World Festival of Animated Films, em 2002 — como a melhor animação da História. O filme de 29 minutos acompanha um lobo que bisbilhota o cotidiano de várias pessoas, reproduzindo um mosaico do estilo de vida soviético. Svetlana foi aluna de Norshteyn, assim como de Fyodor Khitruk (1917–2012), outro destaque da animação russa:

— Norshteyn contava que Khitruk parava no corredor, pensando num detalhe, e fumava sem parar. Ele estava dentro de seu filme, pensando em ideias, procurando soluções simples e elegantes. Depois, contaminava todos com sua energia artística. Lembro-me de como sentia vergonha quando eu não gostava de uma coisa minha, e como ele ficava feliz quando alguém alcançava o sucesso. Por isso, ao lado de Khitruk viveram e foram formados ótimos diretores.

O relato de Svetlana ilustra a explicação de Serguey Kapkov, especialista em animação russa, para a ex-União Soviética ter virado um terreno fértil para tantos animadores consagrados:

— Os principais diretores da URSS davam aulas. Passaram a maestria deles para as futuras gerações de diretores.

Os curadores da mostra, Luiz Gustavo Carvalho e Maria Vragova, chamam a atenção para algo curioso: apesar de a URSS ter sido marcada por uma postura beligerante, os desenhos realizados no país ensinam bons valores.

— A propaganda da URSS sempre apelava à paz e ao humanismo — observa Kapkov. — Após a Segunda Guerra, nosso país estabeleceu uma política de paz e bondade na literatura, nos meios de comunicação, no cinema e nas escolas. Os diretores adaptavam contos de fadas, onde o mal era sempre punido. Temas políticos não eram abordados. 

Maria Vragova garante que o perfil bem-intencionado das animações russas não tem a ver com censura:

— É claro que houve proibições. Aconteceu com “A gaita de vidro” (de Andrei Khrzhanovsk, 1968), um filme que aborda o destino de um artista numa sociedade socialista. Mas, em geral, é só um traço típico da animação soviética.

Junto ao fim da URSS veio a redução do investimento nas animações. Hoje, o gênero sofre com orçamentos baixos e a concorrência internacional. Mas a qualidade do conteúdo não caiu. Um dos destaques da mostra é “O velho e o mar” (1999), de Aleksandr Petrov, indicado ao Oscar de melhor curta. Petrov disputou a estatueta novamente em 2008, por “Moya lyubov”.

— Hoje em dia não temos uma técnica específica, como é o caso do 3D nos EUA. A tecnologia não é nosso alvo principal. Em primeiro lugar está sempre uma ideia — diz Kapkov.