Cotidiano

Andreas Valentin, professor: ?Somos permanentemente traídos pela memória?

201609261609203237.jpg?Tenho 63 anos, nasci no Rio, e sou filho de alemães. Formei-me nos EUA, em História da Arte, e sou doutor em História Social e mestre em Ciência da Arte. Fico entre Rio e Berlim: dou aula de fotografia na Uerj e pesquiso sobre fotografia brasileira e alemã na Freie Universität. Meu pai me deu a primeira câmera: uma Kodak Brownie.?

Conte algo que não sei.

Somos permanentemente traídos pela memória. É mais fácil lembrar-nos de coisas que desejaríamos esquecer do que daquelas que realmente gostaríamos de lembrar, e que são as memórias, talvez, mais marcantes. A maneira que encontrei de lembrar e resgatar a história de superação da minha família foi através da fotografia. Com esse resgate fotográfico, a gente pode retomar uma memória mais íntegra e consistente.

Como foi esse processo?

Encontrei uma série de slides, de 35mm, do meu pai, num pacotinho no qual estava escrito, com a letra dele: ?Berlin?. Pensei: ?Uau! Aqui tem alguma coisa!? Os slides despertaram um processo de resgate da memória familiar. Era um passeio do meu pai com a minha avó por Berlim: fotos de ruas, do muro, ida ao museu… Os slides foram o ponto de partida para reconstruir a história da minha família: meus pais e meus avós saíram da Alemanha para o Brasil na Segunda Guerra, só retornando em 1966. A ideia era tentar reconstruir essa trajetória, não apenas da história sequencial, mas realizar os caminhos que ele não fez, mas eu fiz.

Os slides são de que ano?

De 1975, e não encontrei relato algum do meu pai referente a eles, apesar de ele ter escrito diários de viagens. Tentei descobrir os caminhos que eles traçaram há 40 anos. Meu primeiro resgate foi refazer os mesmos ângulos dos slides. E, a partir daí, traçar outros caminhos, que chamei de ?trajetos de memória?, tentando chegar aos possíveis trajetos que sei que meu pai percorreu.

Qual a sua relação com suas origens, com as situações que definiram sua existência?

Meus pais falavam pouco sobre isso. Mas essa memória não foi apagada. Só descobri muito recentemente por que saíram da Alemanha, e como foi. A fotografia ajudou a resgatar essa memória da minha história familiar.

Quais são as armadilhas da memória de que fala?

Acho que eu deletei grande parte dessa chegada trágica ao Brasil da minha memória. A fotografia e a pesquisa histórica em cima de imagens ajudam. Esses trajetos de memória ficam mais claros, mais reais, geográfica e historicamente, à medida que a gente vai vasculhando as lembranças.

E o que quer dizer quando afirma que criamos nosso próprio registro de passado?

Por conta das armadilhas da memória. A gente acaba criando coisas que…

Não existiram…

Ou, se existiram, acabaram tendo importância maior do que outras que existiram, mas que a gente não lembra.

Seu pai era fotógrafo?

Sabia que meu pai fotografava, mas quando fui vasculhar é que percebi que ele tinha o cuidado de montar uma narrativa, escrevendo os períodos das imagens, que ele juntava em pacotinhos ? muito importantes no que chamo de remontar os trajetos de memória. Num desses conjuntos de fotos está escrito ?Saída da Alemanha?. Aliás, é um termo em alemão mais forte: ausreise. É difícil traduzir: é quando você viaja para não voltar mais.

Voltar às raízes é uma necessidade de quem tem o exílio nas origens?

Para mim, certamente. Na minha memória está enraizada uma Alemanha judaica, a partir da palavra ausreise, que pressupõe o não retorno, mas, ao mesmo tempo, pede uma volta. Não nostálgica, efêmera, fugidia, mas muito mais profunda.