Cotidiano

Andrea Beltrão protagoniza o seu primeiro solo:'Antígona'

INFOCHPDPICT000062722553RIO ? Após viver a pior atriz do mundo, arriscando-se a interpretar tão mal a ponto de matar a Rainha de Portugal, em ?Jacinta? (2012), e fazer do luto um ritual de luta e afirmação da vida em ?Nômades? (2014), Andrea Beltrão mirou-se na coragem e na obstinação de suas últimas personagens e se provocou: ?E agora, para onde eu vou? Como é que eu me arrisco???. As perguntas são velhas companheiras, vozes que a perseguem desde o dia em que subiu ao palco pela primeira vez, em 1976, no Tablado, assombrada por outra questão: ?Será que eu posso?? Sem saber, foi lá e fez. Pulou em cena como João Grilo, e estreou desafiando um clássico: ?Auto da compadecida?, de Ariano Suassuna. Aprendeu, no susto, que o temor e o enfrentamento são a chave e a porta de uma carreira aberta ao abismo. Ao completar 40 anos de profissão, Andrea se coloca na mesma situação do começo. A partir de amanhã, ela celebra sua trajetória numa sucessão de atos inaugurais: pela primeira vez faz um monólogo, um clássico grego, é dirigida por Amir Haddad e assina com ele boa parte da dramaturgia da sua ?Antígona?, a partir da tradução de Millôr Fernandes. A estreia é no Poeirinha, espaço que, também pela primeira vez, recebe uma peça da atriz.

Na última terça-feira, após um ano de trabalho ? pesquisa, escrita e ensaios ?, Andrea abriu a montagem ao público, numa sessão para convidados. A incerteza e os gestos ainda trêmulos após os aplausos contrastavam com a euforia da plateia, certa de ter visto não só um ato de coragem, mas de talento. Andrea agradecia e recebia, aos poucos, o público em cena. O ator Tonico Pereira dizia ter assistido à ?primeira grande tragédia stand up?, e Amir Haddad, emocionado diante da performance de uma ?atriz sem defesas e amarras?, sintetizava a força do seu encontro com Andrea e as bases do trabalho.

? Ela me convidou e confessou: ?Estou na zona de conforto e não estou confortável. Quero sair disso. Estou cansada. O que mais eu posso fazer?? ? lembra. ? É raro um ator, que já tem um lugar, se lançar ao risco. Então quando recebo um convite desses de um ator, não posso recuar. Para mim, o ator é tudo. É o ator quem inventa o teatro, não é o teatro que inventa o ator. É o ator que faz nascer, a cada segundo, dentro de si, o teatro. Essa peça afirma isso. Com simplicidade cênica.

O despojamento da cena que se vê em ?Antígona? traduz a busca de atriz e diretor por um espetáculo direto, comunicativo, confiado às capacidades de Andrea, vista por Amir ?como um rapsodo grego, com grande capacidade de guiar a história?.

? Sempre rejeitei a ideia de monólogo ? diz a atriz. ? Mas o desejo de fazê-lo nasce a partir de uma busca por simplicidade no fazer teatral. Sou apaixonada por ?Antígona? e pelo Amir há tempos, e ao assistir a trabalhos como os de Julio Adrião (?A descoberta das Américas?), Fernanda Torres (?A casa dos budas ditosos?), Gustavo Gasparani (?Ricardo III?), entre outros, pensei numa peça capaz de ser realizada em qualquer lugar, e é por isso que tudo se desenvolve numa cena simples, com poucos elementos.

INFOCHPDPICT000062733852No palco, tudo começa como se ainda não fosse o início da peça. Com a porta do camarim entreaberta e a luz revelando, por igual, a cena e a plateia, Andrea atua como numa conversa com o público. Atrás dela, não há exatamente um cenário: a parede da sala recebe uma espécie de árvore genealógica dos mitos trágicos gregos, composta por folhas de papel impressas com os nomes de deuses e deusas, desde Zeus e Hera. A linhagem grega é encadeada e narrada num misto de teatro e palestra, mas ?sem intelectualismo, de modo simples?, diz Amir. E divertido. A história aponta para Antígona a partir de Cadmo, fundador de Tebas, e se aproxima dela com a chegada de Lábdaco e de sua amaldiçoada linhagem, da qual fazem parte Laio e seu filho Édipo, cujo casamento incestuoso com a própria mãe, Jocasta, arremessa ao ocaso trágico quatro irmãos, Polinice, Etéocles, Ismênia e, claro, Antígona. Somente após ?contar o mito Antígona?, como define Amir, começa ?o rito de encenação de ?Antígona??.

? Quando os gregos assistiam às tragédias, conheciam toda a história, a linhagem familiar. Sabiam o que deuses e deusas haviam feito, e as pessoas e entidades citadas eram do cotidiano, assim como nós em relação à ?Paixão de Cristo?, com Jesus, Maria, Judas… ? diz o diretor. ? Oferecemos esse contato com a história e a ancestralidade para chegarmos em Antígona com essas informações.

Entre elas, a de que Antígona retorna a Tebas após a morte de Édipo, seu pai. Pronto. É aí que a porta do camarim se fecha, a luz baixa, e Andrea dá partida na sua múltipla saga interpretativa, que atravessa personagens, coros, mensageiros e se concentra, claro, no embate entre a protagonista e seu algoz. A morte dos irmãos Etéocles e Polinice e a tirania de Creonte, que impede Polinice de ser enterrado, precipita a revolta de Antígona e também a cólera cega de Creonte, que, ao não dar ouvidos às visões do vidente cego Tirésias, enfrenta a fúria do destino.

? Fala-se de Antígona como símbolo de transgressão e desobediência civil, mas o que a move é a ligação do ser humano com a sua história e sua família ? diz Amir. ? É isso que predomina. Ela reivindica o amor, o respeito aos antepassados e a tudo o que vem antes e nos compõe. Sófocles diz que nenhum governo ou poder pode ignorar o ser humano e a sua história e privilegiar a ordem púbica da cidade.

E Andrea faz seu alerta final, citando Sófocles:

? ?Atenção, apenas o governante que respeita as leis de sua gente e a divina justiça dos costumes mantém a sua força, porque mantém a sua medida humana?. ? Sófocles escreveu ontem as questões de hoje, do mundo. O desrespeito à humanidade, a desvalorização da vida, o poder nas mãos de novos déspotas. ?Em mim só manda um rei, o que constrói pontes e destrói muralhas?. Isso não faz um sentido imenso? Antígona coloca limites na tirania e diz ?Eu nasci pro amor??.

SOBRE ANTÍGONA:

Escrita por Sófocles no ano de 441 a.C., a peça ?Antígona?? é daquelas peças que se tornam atemporais, universais e imortais. Pela questões que aborda, pelas reflexões que desperta, pela força que seu papel feminino imprime.

Na tragédia, a personagem principal, filha de Édipo e Jocasta, quer enterrar de maneira digna e de acordo com a religião o seu irmão Polinice. Mas entra em choque com Creonte, rei de Tebas, que havia determinado que o corpo deveria permanecer insepulto. Antígona desafia Creonte, tenta enterrar o irmão, mas é detida e levada a responder por seu ato. No desfecho da trama, ambos são punidos por suas posições radicais.

?Antígona?? leva à cena, entre outros aspectos, o conflito entre as leis divinas e as leis dos homens e o amor fraternal.

SERVIÇO ? ?ANTÍGONA?

Onde: Poeirinha ? Rua São João Batista 104, Botafogo (2537-8053).

Quando: Estreia sexta, às 21h. De qui. a sáb. às 21h, e dom., às 19h. Até 18/12.

Quanto: R$ 80.

Classificação: 12 anos.