Cotidiano

Alta de Trump nos EUA é sinal de crise coletiva, diz artista americano

Photo by Holly Kuper.jpgConhecido no Brasil por suas adaptações para os quadrinhos de obras de Franz Kafka, ?Desista! e outras histórias? (2008) e ?A metamorfose? (2010), ambas editadas pela Conrad, o desenhista americano Peter Kuper está de volta com dois novos álbuns, que revelam um pouco mais do seu estilo, uma mistura de lirismo e crítica social, além do engajamento no ativismo ambiental.

Em meados de setembro, a Companhia das Letras lança ?Pau e pedra?, que o autor classifica como ?um livro silencioso? sobre o poder e a vontade de expandi-lo a qualquer custo, inclusive às expensas do meio ambiente. Nos primeiros dias de dezembro, o artista virá ao país como convidado da Comic Con Experience, em São Paulo, para lançar seu álbum mais recente, ?Ruínas?, editado pela Marsupial Editora. Ganhador no mês passado do prêmio Eisner de melhor álbum gráfico, uma referência no mundo dos quadrinhos, o livro acompanha a viagem de um casal, a escritora Samantha e o entomologista George, pela região do México para onde as borboletas Monarcas migram.

Kuper, que desde 1997 desenha o lendário cartum ?Spy vs Spy? para a revista ?MAD?, fala sobre seus trabalhos, a necessidade de cuidar do planeta e a suspeita de que os Estados Unidos estejam sofrendo um ?colapso nervoso coletivo? em razão da popularidade do republicano Donald Trump.

Qual é a origem de ?Ruínas?, de onde tirou a ideia para criar o álbum?

Eu visitei o México muitas vezes, morei em Oaxaca, entre 2006 e 2008, o que inspirou muitos dos personagens e eventos que retrato em ?Ruínas?. Também adoro insetos e tive a oportunidade de criar borboletas Monarcas e depois visitar a reserva no México onde elas chegam aos milhões. É realmente uma espécie de milagre ver as cores e sombras de milhões de borboletas, todas em um lugar só, tornando-se outra grande parte da minha história. E também ver as grandes mudanças ambientais contra as quais estamos todos lutando e como isso pode ser visto por meio da natureza.

Como você descreveria essa passagem pelo México, com sua família?

Um presente. Eu ampliei minha visão de mundo, e o México tornou-se uma espécie de segundo lar. Minha mulher, minha filha e eu aprendemos espanhol ? especialmente minha filha, que tinha 9 anos quando nos mudamos para lá. Ela foi a principal razão para irmos, a ideia era expandir seu vocabulário cultural. Transformou sua vida, então nosso objetivo lá foi alcançado. Aproveitamos tanto nosso tempo que eu poderia continuar por horas falando sobre a estadia.

Esse período no México resultou em um outro livro seu, o ainda inédito no Brasil ?Diário de Oaxaca? (2009).

?Diário de Oaxaca? é o meu caderno de rascunhos escrito na época em que estive no México. São minhas observações e desenhos, assim como meditações sobre a experiência de viver em Oaxaca. Foi o ?esquenta? para fazer ?Ruínas?, e se você lê os dois livros pode ver como as ideias de ?Ruínas? se formaram, apesar de ser um quadrinho de mais de 250 páginas, com narrativa e desenhos. ?Diário? nasceu da minha experiência diária desenhando o que estava diante dos meus olhos no México e tem pouquíssimos quadrinhos.

O protagonista em ?Ruínas? é um casal, um entomologista e uma escritora, ambos com traços de personalidade seus. Quais são e por que decidiu dividi-los entre os dois personagens?

Foi uma grande oportunidade de explorar a dualidade de minha personalidade. De uma certa forma, a mulher, Samantha, é próxima de mim, trabalhando em um livro e animada de ganhar o mundo e se arriscar. O marido, George, é mais tímido. Mas é um outro lado da minha personalidade, mais engraçada, e compartilhamos aquele entusiasmo pelo mundo dos insetos e desenhos. Era uma oportunidade de colocar tanto o lado direito quanto o esquerdo do meu cérebro na história!

?Pau e pedra? é um livro de 2004, classificado por Alan Moore como ?uma brilhante metáfora da era Bush?. Acha que essa abordagem ainda é atual?

A história é uma alegoria sobre como o poder é dado e tirado e sobre o desejo insaciável de expandir impérios, mesmo quando isso se traduz na destruição do mundo natural e na nossa morte. Essa é uma história que começou muito antes de George W. Bush e, infelizmente, ainda continua valendo.

Esse é um ?livro silencioso?, segundo sua própria definição. ?Ruínas? também é repleto de tempos mortos. Por quê?

Criar quadrinhos sem palavras é um dos mais poderosos aspectos desse formato; usar imagens como uma forma universal de entendimento. A ideia de que uma história pode comunicar para além das fronteiras e barreiras de linguagem é como criar uma Torre de Babel ? sem o insulto a Deus! Todos podem falar essa linguagem visual. Minha intenção é me comunicar com os leitores sem palavras, e os quadrinhos são o veículo definitivo para atingir esse objetivo.

Suas adaptações literárias fizeram sucesso no Brasil, especialmente a adaptação de ?A metamorfose?. Pretende continuar adaptando outras obras literárias?

Na verdade, meu próximo livro tem mais adaptações de Kafka. Meu livro ?Desista!? tinha nove contos de Kafka, e eu estou acrescentando mais três para uma edição chamada ?Kafkaesque?.

Já que tem uma visão crítica da política, qual é a sua visão das eleições presidenciais nos Estados Unidos? Você acha, por exemplo, que o grande apoio ao candidato republicano, o milionário conservador Donald Trump, é um problema?

Eu acho que estamos sofrendo uma crise nervosa coletiva nesse país (Estados Unidos). Que um demagogo insano como Trump possa ter ido tão longe nessas eleições é um exemplo de quantas pessoas perderam contato com a realidade. Qualquer um que pense que mais armas e um Exército maior não tornarão as coisas piores é louco. Nosso sistema não funciona mais, Hillary (Clinton, candidata democrata à presidência) não vai consertá-lo, isso vai exigir mudanças revolucionárias, que eu espero que tenhamos a determinação, como país, de levar adiante. Trump, no entanto, representa uma corrida em direção ao abismo. Nunca achei que ele poderia chegar tão longe, portanto, não vou relaxar enquanto ele estiver por perto. Provavelmente, também não vou relaxar depois das eleições!

Você disse em uma entrevista que foi para o México anos atrás porque George W. Bush tornou a vida insustentável nos Estados Unidos. Se Trump vencer as eleições, acha que vai querer sair do país de novo?

A verdade é que não vou a lugar nenhum. Só sairia se corresse perigo de vida. Nova York é minha casa, gosto tanto daqui que é como uma amante da qual não posso me afastar por muito tempo. Certamente, eu gostaria de fazer novamente o que fizemos em nosso período sabático no México e voltar por um curto período de tempo. Quem sabe, se eu fosse outra vez para o México, poderíamos viver em um lugar que não vai estar debaixo d?água no futuro próximo.

E sobre o Brasil, o que sabe? Está familiarizado com a situação política do país?

Eu visitei o Brasil três vezes até agora e adorei cada vez. Estou ansioso para me conectar com as pessoas. Só sei o que leio nos jornais e escuto das pessoas. Minha nova assistente é brasileira, então, fico sabendo mais ou menos das coisas por ela. Mas eu precisaria ler mais para entender o seu país do jeito que gostaria, com alguma consistência.