Cotidiano

A responsabilidade das artes na cultura do estupro

blurred-lines-remixes.pngRIO – Nas artes, a representação do estupro se situa num perigoso espaço que pode ser percebido tanto como um alerta quanto como um estímulo a sua perpetuação. O limite é tênue, há uma dificuldade entre artistas para identificar quando termina a denúncia e começa a espetacularização. Por isso, é comum que músicas, séries e filmes apareçam no centro de polêmicas quanto a sua parcela de responsabilidade na disseminação da cultura do estupro. O tema, urgente, está mais uma vez em voga na sociedade brasileira, desde que veio à tona o abuso sexual cometido por mais de 30 homens contra uma adolescente, na semana passada, no Rio. A repercussão do caso não deixou de fora a possível influência da produção cultural na banalização da violência contra a mulher.

Talvez uma das séries mais bem-sucedidas entre os jovens hoje seja ?Game of Thrones?. Ela se passa num universo de fantasia, onde clãs disputam o poder de uma terra em que há dragões, feiticeiros e mortos-vivos. Mas ?Game of Thrones? acabou se destacando também por outro motivo, nem tão longe da realidade: o excesso de cenas de estupro. Até a quinta temporada, exibida no ano passado, as sequências de abusos sexuais contra mulheres se tornaram comuns, gerando críticas e mais críticas entre os fãs. O problema foi considerado mais grave porque, em alguns casos, os estupros exibidos na série não estavam nos livros que originaram a história. Foram apenas uma ideia de produtores, segundo os críticos, para aumentar seu apelo para a TV.

?Game of Thrones? é a série mais popular da história da HBO, é exibida em mais de 170 países e foi eleita a melhor de drama de 2015 pelo Emmy. Seu caso, contudo, não é isolado. Estupros estão no cinema, na TV e também na música pop, nem sempre com uma função educativa.

GOT

? Um filme sobre violência serve para chamar atenção ou para difundir? É uma dúvida que não acaba nunca. Mas fica claro que há um problema quando de certa forma se isenta um estuprador e culpabiliza a vítima ? afirma a crítica de cinema Susana Schild. ? Há uma imagem antiga no cinema de que mulher sozinha é sinônimo de mulher disponível. Eu me lembro de um filme com a Jodie Foster, ?Acusados? (1988), em que sua personagem está num bar sozinha à noite e é estuprada. Como se disponibilidade da mulher fosse sinônimo de permissividade.

No cinema, a violência contra mulher é recorrente. O francês ?Irreversível? (2002), de Gaspar Noé, provocou repulsa pela longa cena de estupro da personagem vivida por Monica Bellucci; da mesma forma que muita gente não aceitou bem o estupro coletivo na personagem de Dira Paes no brasileiro ?Baixio das bestas? (2006), de Cláudio Assis. Em outras situações, a tragédia chama menos a atenção. Indicado ao Oscar deste ano, o filme ?O quarto de Jack? traz uma sequência de estupro vista pelos olhos de um menino.

? Eu trabalhei com questão da violência várias vezes, agora mesmo estou fazendo um filme sobre a banalização da violência ? afirma Lúcia Murat, diretora de longas-metragens como ?Quase dois irmãos? (2004) e ?Maré, nossa história de amor? (2007). ? Para se retratar um estupro, acho que o ideal é fazer da forma mais crítica possível. Mas é difícil saber se está se fazendo o certo ou não. Só não dá para proibir tratar do tema, não pode virar tabu, porque aí periga cair na censura.

?Eu sei que você quer?

Se você censurar o funk, não vai acabar com a cultura do estupro. Ela está no trabalho, na escola, na propaganda, nas novelas

Campo em que o ponto de vista masculino historicamente predomina, nos últimos anos a música popular vem sofrendo ruidosos questionamentos naquilo que poderia ser considerado apologia à violência sexual contra mulheres. E eles vão desde a muito popular canção ?Blurred lines?, do cantor Robin Thicke (de 2013, do refrão ?eu sei que você quer? e cuja letra tenta caracterizar o consenso no sexo como algo ?indefinido?) a ?U.O.E.N.O? (do rapper Rocko, do mesmo ano), no qual o convidado Rick Ross diz em seu rap que vai pôr droga no champanhe de uma mulher, levá-la para casa, ?e ela nem vai saber?.

Em 2016, porém, as músicas não passaram sem recriminações de algumas artistas. Foi o caso da cantora Betty Cosentino, do grupo Best Coast, em relação à canção ?Back to sleep?, do cantor ? e ex-namorado violento de Rihanna ? Chris Brown (?Cantar sobre fuder uma garota para que ela volte a dormir e depois dizer a ela que não fale nada é cantar sobre estupro?, acusou Betty). E também da atriz Lena Dunham, criadora da série ?Girls?, que voltou suas baterias para o hit de Justin Bieber ?What do you mean??, no qual ele pressiona a garota a dizer com todas as letras se quer sexo ou não. ?Vamos acabar com canções pop nas quais uma menina acena com um sim quando quer dizer não e vice-versa?, escreveu Lena no Twitter.

No Brasil, a grande polêmica é com o funk ?Baile de favela?, uma das músicas mais populares do ano no país, em que o MC João, da periferia de São Paulo, versa: ?Ela veio quente, hoje eu tô fervendo / quer desafiar, não tô entendendo / mexeu com o R7 vai voltar com a xota ardendo?. Em entrevista em janeiro, ao site ?G1?, o rapper se defendia: ?Na letra digo que ?ela veio quente?. A gente está no clima, ela quer.? Grande defensora do gênero funk, a cantora Fernanda Abreu, no entanto, tem outra interpretação sobre a letra.

Irreversível

? É cultura do estupro em ritmo de funk ? denuncia Fernanda. ? Mas continuo me perguntando se isso não é reflexo da sociedade machista brasileira. Esses funks de putaria e proibidões acabam sendo um espelho da carência total de educação, cultura e amor. Por outro lado temos estudante de medicina da USP e estudantes da Universidade Rural e de várias outras universidades que estupram e disseminam a cultura do estupro. Todos disponibilizando imagens na internet, certos da impunidade, que é o maior alimento para a disseminação dessa cultura do estupro no Brasil.

Antropóloga e estudiosa do funk, a professora da UFRJ Adriana Facina vê, porém, o ?Baile de favela? mais como ?uma expressão da virilidade de uma sociedade patriarcal? do que uma conclamação à violência contra as mulheres.

? Não há nada que indique, na letra, que o sexo não seja consentido ? defende Adriana. ? Além do mais, se você censurar todas as letras do funk, não vai acabar com a cultura do estupro. Ela está no trabalho, na escola, na propaganda, nas novelas e não somente no funk.

E se o funk hoje tem vozes feministas, como a da MC Carol, a MPB em geral não tem ficado fora da discussão acerca da violência dos homens contra as mulheres. No show de seu novo disco, ?A mulher do fim do mundo?, Elza Soares canta ?Maria da Vila Matilde?, dos versos ?você vai se arrepender de levantar a mão pra mim!?

? Esse estupro foi uma coisa repugnante, eu tô de cara. ?Maria da Vila Matilde? taí gritando para que isso não aconteça ? diz Elza. ? Tô com tanta raiva. Vou falar disso no próximo show. Tenho que falar.

Já a cantora Aíla lança mês que vem um álbum com a música ?#NãoVouCalar?, que fala das cantadas grosseiras na rua e do assédio sexual no transporte público, realidade diária de muitas brasileiras (?Se insistir, eu vou berrar mais alto / esculachar tua cara, arrochar tua tara?, canta).

? ?#NãoVouCalar? é um grito feminista de denúncia, mas também de libertação, de não aceitação dos abusos recorrentes sofridos por nós mulheres diariamente, abusos explícitos e criminosos, como o assédio sexual, o estupro, e também, e não menos criminosos, os abusos implícitos, tão enraizados em falas e ações cotidianas que nos rodeiam ? argumenta.

Colaborou Leonardo Lichote