Cotidiano

A pedido do Globo, três autores escrevem contos inéditos de Natal

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“Mirra e mangaba”, por Noemi Jaffe*

Baltazar, Melchior e Gaspar estavam com pressa. Instavam Maria e José para aprontarem logo o menino Jesus, fazendo uso do que estivesse mais à mão, sem se preocupar com frio, chuva ou com o restante da bagagem. Não havia tempo a perder. Os pais o entregaram ainda úmido e sujo de palha, temerosos da longa viagem que os magos anunciaram, sem entretanto saber para onde seria, nem por que, nem se ou quando o menino e aqueles estranhos senhores retornariam. Não bastavam a aparição do anjo, a gravidez misteriosa, a fuga, a vinda dos reis com aqueles presentes aparentemente inúteis, agora era ainda essa partida sem explicação. Maria e José se entreolharam, cabisbaixos mas decididos: não havia nada a fazer. Era entregá-lo e suportar.

Melchior ainda tropeçou logo na saída da gruta, quase deixando o menino cair. Baltazar ralhou, Gaspar pacificou a todos e saíram em disparada para, logo em seguida, surfarem desajeitados num facho intermitente de luz vermelho-alaranjada. (Sabe-se, de fonte incerta mas confiável, que Melchior, o mais poderoso dos reis, apesar de operar magias alucinantes, variava um pouco da cabeça e, por isso, fazia alguns feitiços muito grosseiros).

Lá, dentro da malha luminosa, os três, mais o menino, iam desabalados. Era passar o menino para um lado e o outro, acalentando-o no choro, eram canções esquecidas de ninar, era a mamadeira improvisada com leite diretamente extraído da Via Láctea (e se o menino fosse alérgico?), tudo em rompantes de meias brigas, vestes esbarrando nas nuvens, quedas lancinantes e uma que outra risada.

Finalmente, depois de uma viagem rápida mas nem por isso menos longa ou arriscada, aterrissaram todos sãos, a tempo de presenciar a outra cerimônia a que os três deviam comparecer, junto com o pequeno messias.

E eis que era outra festa de nascimento, também de um menino, em tudo igual e em tudo diferente daquele que os reis traziam nos braços, entre rindo e ofegantes. E todos aguardaram a entrega dos presentes. E foram caranguejos, e leite, e papel de jornal, e um olho d?água, e um canário da terra, e uma bolacha d?água, e um boneco de barro, e uma pitu, e um abacaxi, e ostras, e tamarindos, e mangabas, e cajus, e carne de boi, e mangas e, depois de tudo, goiamuns. E os reis se admiraram da beleza e da fartura daqueles mimos, tão bons e comparáveis ao incenso, ao ouro e à mirra que, compassivos, quiseram dividir com aquele novo garoto. Mas ainda tiveram que aguardar as previsões de duas ciganas altivas antes de, sem graça, apresentarem aos pais do garoto o seu parceiro no Oriente, o menino Jesus.

? Bom dia, senhor, bom dia, senhora. Somos Baltazar, Melchior e Gaspar e viemos na Estrela do Leste, de uma distância quase infinita no tempo e no espaço, lhes apresentar o irmão, em paz, em beleza e importância, do seu menino nascido. Seu nome é Jesus e ele é um cristinho. Viverá para iluminar a todos do outro lado do mundo, assim como o seu, aqui sob a Estrela do Oeste, veio para brilhar, depois de tempos insanos, entre os seres do vosso mundo. Que nome, em graça, vocês lhe darão?

? Severino é o nome, senhores, e folgamos em saber que ele terá um irmão, parceiro em cruz e em lida. Pois o futuro que o espera não é dos mais promissores.

Baltazar, Melchior, Gaspar, Jesus, Severino pai, Severina mãe e Severino menino olharam, juntos, para o facho de luz vermelho-alaranjada que sumia lentamente no horizonte e, juntos, sorriram um riso doce e precavido, Severina mãe segurando o incenso e Baltazar, uma manga.

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* Noemi Jaffe venceu o Prêmio Brasília de Literatura em 2014 com ?A verdadeira história do alfabeto? e foi finalista dos prêmios São Paulo de Literatura e Oceanos, neste ano, com ?Írisz: as orquídeas?

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“Natal no exílio”, por Julián Fuks**

Por toda a noite a porta permanecia aberta. Tornava-se um vão indiscreto por onde entravam rostos sempre imprevistos, não os mesmos tios de outras vezes, não os mesmos primos, mas uma comunidade de seres destituídos cujos vínculos se faziam mais fortes do que a mera coincidência sanguínea. Ali culminavam longos trajetos: era o descanso de tantos desterrados argentinos, mas também de uruguaios e chilenos, de paraguaios solitários, era o abrigo de judeus e ateus em noite de outra hegemonia, era o pequeno país dos brasileiros sem família.

A cada ano ganhavam mais elementos as células avulsas que assomavam à porta, a cada ano crescia também a comunidade dos pequenos. Cada filho que nascia tornava os expatriados mais brasileiros, cada filho que nascia encerrava um périplo clandestino, encerrava um desterro ? fosse ele um exílio oficial, fosse um deserto íntimo de nostalgias. Eu fui um desses filhos, fui uma das crianças a balbuciar suas primeiras palavras na barafunda de sotaques e línguas. Naquelas noites de Natal não aprendia apenas a variedade das palavras, dos rostos, das biografias. Aprendia, também, algo da existência em comunidade, algo da pertinência das lutas coletivas muito além de suas consequências, algo da permanência das utopias.

Passada a meia-noite os presentes se distribuíam sem cerimônias, não havia rituais rígidos, nenhuma encenação infantil como na casa dos outros, nenhuma oração entoada em uníssono. Passada a meia-noite se dispersava a concentração, multiplicavam-se os círculos, e eu me punha a vaguear entre rodas e a espreitar conversas que pouco entendia. Alguém um dia falou de Brecht, que a sina dos que fugiam, dos que perdiam a cidadania, não era pior do que a sina dos que ficavam. Alguém falou de democracia e liberdade, de respeito aos desígnios do povo, aos direitos invioláveis, e outro respondeu citando Gelman, como nunca esqueci: que é preciso falar apaixonado, e não da paixão, que é preciso falar claro, e não da claridade, que é preciso falar livre, e não da liberdade.

Já há algum tempo se passou a meia-noite, e eu me vejo a falar da liberdade, sem saber se de fato falo livre. Há algum tempo a porta não se abre como antes, cada célula cresceu o bastante para ganhar autonomia, para se isolar na convenção que alguém instituiu como família. Houve quem se afastasse por inércia dos dias, quem mandasse mensagens cada vez mais cordiais, cada vez menos sinceras. Houve quem se desentendesse diretamente, por falar de indignação e não indignado, ou quem já não se lembrasse de nenhum verso de Brecht ou Gelman, quem já não se lembrasse da poesia.

Quanto a mim, olho para a porta fechada e me deixo assombrar por meu deserto íntimo de nostalgias. Estamos num ano já longínquo, o ano que rompeu em mim algo da ingenuidade benquista daquelas noites, algo de seu otimismo. Há trinta anos venho procurando entender as muitas conversas entreouvidas, quais os direitos que ninguém pode violar, os desígnios que governante nenhum pode romper, a magnitude da mais simples das utopias, a mais comezinha, a democracia. Esta noite não demoro muito a entender: vivo hoje o meu primeiro natal no exílio.

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**Julián Fuks é autor, entre outros, de “A resistência”, vencedor do Prêmio Jabuti deste ano na categoria ficção e segundo colocado no Prêmio Oceanos.

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“Descobertas”, por Ana Maria Gonçalves***

Havia um espaço de não mais que um centímetro entre a luva branca e a manga do casaco vermelho com acabamento de pele sintética. A roupa era quente e nem o ar-condicionado do shopping aliviava o calor: o suor escorria pela testa e pela nuca, a barba coçava, a botina apertava o pé que ia inchando depois de tantas horas sentado na mesma posição, o maxilar doía de tanto sorrir para as fotos. Era das nove da manhã às quatro da tarde, de segunda a segunda, aquele bico que Getúlio tinha arrumado através de uma ONG que fazia inclusão de idosos no mercado de trabalho. Para chegar até ali eram dois ônibus para ir e dois para voltar, carregando uma sacola pesada com a vestimenta e a quentinha, que comia fria mesmo, às pressas, em um dos dois intervalos de quinze minutos que tinha para ir ao banheiro e descansar. Já tinha mais de setenta anos e, apesar de gostar muito de crianças, em algumas tinha vontade de bater. O que o segurava não era apenas a ética no exercício do papel que ali representava, mas a certeza de que a culpa nem era delas, mas dos pais.

Amanda e Marcelo estavam tendo dificuldades para que Julinho continuasse acreditando em Papai Noel. Com quase seis anos e já frequentando a escolinha, o menino vinha fazendo inúmeras perguntas: se não existia um Papai Noel para cada criança, como é que ele conseguia entregar todos os presentes de uma só vez, no mesmo dia? Ele lia mesmo todas as cartas que todas as crianças do mundo enviavam? Quantas línguas o Papai Noel falava? Quem contava para ele se a criança tinha ou não se comportado bem durante o ano? Onde ele arranjava dinheiro para tantos presentes? Ele não se confundia e entregava presentes trocados? Quantos ajudantes ele tinha? Resolveram levar o garoto ao shopping, para que ele perguntasse pessoalmente.

Getúlio já tinha contado: nos dias e horários mais movimentados, ouvia, pegava no colo, conversava e tirava fotografias com mais ou menos cem crianças por hora. De longe, apenas observando-as na fila, já sabia quais seriam as mais problemáticas. Viu Julinho a umas dez crianças de distância: o menino vinha emburrado, braços cruzados na frente do corpo, cabeça baixa, sem responder ao estímulo dos pais, que quase o obrigavam a seguir adiante. Pelo tamanho da criança, sabia que teria que ser mais convincente do que era com as menores. Quando chegou a sua vez, os pais já brigavam com o menino, dizendo que ele tinha que ir, porque tinham saído de casa, porque tinham enfrentado a fila etc etc etc. O menino se aproximou, não quis se sentar no colo, não quis sorrir para a foto, não quis fazer nenhuma das perguntas que tinha preparado. Olhou, no entanto, com misto de tristeza e curiosidade, o pedaço de pele que aparecia entre a luva e a manga do casaco de Getúlio, e cravou ali um beliscão. Com força, com raiva, com a indignação dos que se sabem enganados. Repreendido pelos pais, já não pôde mais conter o choro, e gritou como se avisasse às outras crianças esperando pela vez na fila:

? Não existe Papai Noel! Não existe! E esse aqui ainda é preto!

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***Ana Maria Gonçalves se consagrou ao escrever o romance ?Um defeito de cor?, que levou o prêmio Casa de las Américas em 2006