Cotidiano

A moça do carro verde

Embora tenha como sonho dourado me livrar do celular (o que não posso em função dos filhos), com ele faço uma trégua nos dias de chuva

Vivian Weiand

Chuva é bom. Chuva é ótimo, mas para as plantinhas e para quem está em casa debaixo do edredom escutando o barulhinho dela batendo no telhado. Isso se não houver nenhuma goteira em cima da geladeira para correr atrás de um pote e deixar sobre ela. Final do dia, trânsito e carros parados em engarrafamentos faz da chuva o prelúdio do fim do mundo. Tudo fica complicado. E pelo celular a gente pede pra um buscar um filho aqui, pra outro prender o cachorro ali e quem chegar em casa primeiro favor pegar o pote aquele e colocar em cima da geladeira.

Embora tenha como sonho dourado me livrar do celular (o que não posso em função dos filhos), com ele faço uma trégua nos dias de chuva. Quando trancados no trânsito até que celular facilita nossas vidas. A moça do carro ao meu lado pelo jeito também pensa assim. Era ela no celular dela, dê-lhe conversa, e eu no meu, dê-lhe teclar. Era dar uma andadinha, parar o carro novamente, e lá estávamos, lado a lado, cada uma no seu universo on-line. A diferença estava no rosto. Enquanto eu pedia ajuda para recolher os filhos, a conversa da moça estava mais agitada. O carro dela andou mais um pouco, visão que só retomei segundos mais tarde, desta vez de uma moça com a cabeça imersa nos braços que estavam sobre a direção. De repente, ela levantou a cabeça. A moça do carro verde estava chorando. Não, chorando não. Ela lamentava a vida. Já vi aquele rosto em outras pessoas. Era uma dor que não havia consolo. O que quer que tenham dito à moça do carro verde foi duro demais e a derrubou.

Aí eu voltei a praguejar contra o celular. Melhor: a quem não sabe usar o celular. Não se passa qualquer informação a qualquer hora para o ouvido de uma pessoa, ainda mais se ela está debaixo de um toró, à noite, tentando voltar para casa.

E ela saiu da minha visão mais uma vez.

O que ela teria ouvido? Queria poder sair debaixo da chuva e ir até a moça do carro verde. “Oi, querida. É sei, você não me conhece, mas vi você chorando e …” esquece. Não vai me receber bem. É capaz até de sentir vergonha e me chamar de intrometida. Queria perguntar se aquilo tudo era por causa de um namorado. “Homem, querida? Você está tão transtornada por causa de um garoto? Olha, tua vida está recém começando, namorado a gente dá um jeito”. Mas e se fosse pai? E se o pai estivesse no hospital? Se tivesse morrido? Bom, daí a gente não dá jeito, mas pode evitar tragédia maior. “Dá pra parar esse carro?” Não sabia se eu tinha esse direito, de interromper o choro da moça do carro verde. “Quer fazer o favor de me deixar chorar em paz?” ela diria. Mas eu nunca me perdoaria se no dia seguinte escutasse na televisão que uma moça em um carro verde se perdeu numa curva na chuva de ontem.

Então a fila andou mais um pouco e pude vê-la mais uma vez. Agora sua cabeça estava para cima, olhando o teto do carro. Seu soluço era cumprido, derrotado, triste. Queria estar lado a lado do carro verde, e o caminhão prata na minha frente começava a me irritar. Eu já não estava tão perto quanto queria da moça do carro verde para avaliar se corria ao encontro dela ou não. Não estamos acostumados a solidariedade gratuita. Ela vai achar que faço parte de uma quadrilha, uma senhora com cara de boazinha mas que é cúmplice em sequestros-relâmpago. E tem a privacidade. Quem sou eu para ela desabafar sobre a vida?

Acho que eu a deixaria roxa de vergonha. E lá estava ela novamente com a cabeça no volante soluçando. Eu queria morrer, mas antes queria ajudar. Já tive a idade dela, uns 21, 22 anos, e alguma coisa eu poderia dizer. A moça do carro verde andou mais um pouco, forçou passagem na rotatória, seguiu a direita. E se eu a seguisse? Mas tinha meus filhos, a janta deles, banho. Filhos estão sempre em primeiro lugar. Viria aquela moça em primeiro lugar na vida de sua mãe? Teria ela mãe? Estaria ela indo ao encontro de sua família?

Fechei os olhos e dei um suspiro. Se Deus existe, que escutasse meu pedido de não deixar que a moça do carro verde provocasse algum acidente. O dia para ela tinha acabado. Talvez a semana, o mês, o ano inteiro. Mas que pelo menos, naquele primeiro momento de angústia e dor, a moça do carro verde chegasse em segurança em algum lugar.

Moça do carro verde, o que quer que tenha acontecido, vai passar. A gente pode ir até o fundo do poço e descobrir que fundo de poço tem subsolo, mas mesmo assim vai passar. Se suportar o sofrimento e seguir adiante não estivesse programado em nossos genes, a humanidade já teria se extinguido. Então, moça do carro verde, respire fundo, busque ajuda, lembre dos verdadeiros amigos – que vão aparecer nessa hora – e entenda que a vida é isso mesmo mas que ali adiante você volta a caminhar.

E num dia com muito sol.

 

A autora é jornalista

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