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?A grande evolução surgirá da integração entre as cirurgias e as próteses?

paratriatlo12.jpgReferência nacional quando se fala de próteses, o ortopedista Marco Guedes conta com um elemento extra de empatia ao atender seus pacientes: ele também é amputado e conhece de perto as dificuldades e as possibilidades específicas geradas pela perda de um membro. Guedes perdeu a perna esquerda em um acidente de moto quando estava no quinto ano da faculdade. Hoje, está à frente de um centro de reabilitação para amputados em São Paulo, onde já atendeu atletas como o velejador Lars Grael, que, em 1998, perdeu a perna em um acidente de lancha.

Membro da Associação Brasileira de Medicina e Cirurgia do Tornozelo e Pé e da Academia Americana de Cirurgia Ortopédica, o especialista conversou com Caminhos Para o Futuro sobre os avanços recentes na área de próteses, o impacto das Paralimpíadas na sociedade e medidas que podem trazer grandes benefícios para os amputados.

Caminhos Para o Futuro: Em sua opinião, quais são os avanços recentes mais importantes na área de próteses, tanto no que se refere a materiais como a design?

Marco Guedes: Eu diria que a maior contribuição, falando nos membros inferiores, foi o pé de resposta dinâmica, feito em tecido de carbono e resina epóxi ou acrílica, que possibilita o armazenamento da energia produzida pela descarga do peso do corpo sobre o pé e liberando a maior parte dessa energia, o que auxilia no deslocamento do usuário. Outra grande contribuição é a introdução de micro processadores para auxiliar o controle do membro artificial pela pessoa que o utiliza, otimizando muito a sua função.

CPOF: Antigamente, predominava a ideia de que a prótese deveria ser visualmente semelhante ao membro amputado. Essa visão mudou? Caso sim, qual a importância no cenário?

MG: A primeira vez que notei a importância dessa atitude foi ao acompanhar a criação e o desenvolvimento do pé Flex-Foot por Van Phillips, nos anos 80. Ao desenhar uma lâmina em forma de C flexível ? feita, na época, de fibra de vidro, bem mais pesada do que a de carbono que veio a seguir – Van Phillips incorporou energia ao seu projeto. Quem gerava essa energia auxiliar ao deslocamento era o peso do corpo do próprio indivíduo, e antes ela era totalmente perdida, pois se dissipava no solo ou reagia em forma de um choque mecânico contra o corpo do amputado. Esse dispositivo também reproduzia a função do tornozelo fletindo e estendendo durante a marcha. Visualmente, o pé mecânico de Van Phillips nada tem a ver com a forma do pé humano, mas é o dispositivo que melhor reproduz sua função. Desde então, passei a encarar as próteses como dispositivos terminais funcionais e não mais como membros artificiais.

CPOF: Qual sua expectativa em relação às próteses utilizadas pelos atletas nos Jogos Paralímpicos? Espera ver alguma inovação?

MG: Não. Existem restrições pelos organizadores para o uso de dispositivos como sistemas eletrônicos ou motores que possam vir a tornar injusta a competição. Eu tenho algumas ressalvas a isso, mas é somente uma visão pessoal. Amputados de membros superiores não podem utilizar nenhum dispositivo terminal para competir. Na natação também não são utilizados dispositivos auxiliares. O tênis poderia ser praticado por amputados com aparelhos protéticos em vez de em cadeira de rodas.

CPOF: Em relação ao futuro, como imagina que serão as próteses dentro de dez anos, por exemplo?

MG: A grande evolução surgirá da integração entre a cirurgia e as próteses. A evolução no campo cirúrgico está muito aquém da evolução tecnológica. Cirurgiões em todo o mundo, de maneira geral, insistem em encarar a amputação de um membro como uma derrota no esforço de preservá-lo. É frequente recebermos pacientes com membros preservados na sua forma, mas que perderam total ou parcialmente sua função. Este membro, quando é amputado em uma cirurgia reabilitadora e recebe um aparelho protético bem construído, liberta o paciente das limitações que eram impostas pelo braço ou perna que havia sido erroneamente preservado. Pode-se dizer que, nesses casos, a amputação liberta o paciente do “aleijão” que foi gerado pela preservação da forma em detrimento da função.

Um grande passo está sendo dado com experimentos cirúrgicos atuais em diferentes lugares no mundo, visando melhorar o controle das articulações protéticas por contrações musculares geradas artificialmente por meio de implantes dos cotos nervosos amputados em outros músculos próximos do coto de amputação. Esses procedimentos possibilitam comandar movimentos bem mais sofisticados do dispositivo protético.

CPOF: Até que ponto aperfeiçoamentos voltados a atletas de alto rendimento são disponibilizados para a comunidade em geral? Qual a importância dos Jogos Paralímpicos nesse sentido?

MG: Na minha visão, a grande contribuição do esporte paralímpico é desmistificar para a sociedade a visão de coitadinho que sempre está vinculada ao portador de deficiência física ou mental. Essas pessoas são somente diferentes na sua maneira de se relacionar com o mundo. Têm direitos e deveres como todos nós. Só precisam de adaptações e acessibilidade que, normalmente, são desenvolvidas para a maioria e não para as exceções. Isso é assim porque ainda escondemos as nossas diferenças ou dificuldades funcionais, como se elas fossem uma falta ou um pecado, em vez de procurarmos resolvê-las da maneira mais proveitosa funcionalmente.

Por meio do esporte, um deficiente passa a imagem de superação e força, mostrando-se capaz de ser um indivíduo válido e produtivo na sociedade. A exposição positiva na mídia de uma pessoa fisicamente diferente também faz com que a visão de um amputado ou de um cadeirante nas ruas passe a ser aceita com mais naturalidade pela sociedade. Além disso, a demanda dessas pessoas por seu direito de ir e vir com maior acessibilidade passa a ter maior repercussão e a ser acatada. Este, acredito, é o melhor produto da realização das Paralimpíadas num país como o nosso.