Cotidiano

A consulesa da França em São Paulo é uma ativista pela igualdade racial

INFOCHPDPICT000059161525SÃO PAULO – Vamos começar pelo final. Depois de um longo papo sobre sua vida e carreira de ativista, vários chás franceses, café e doces (trazidos pela própria Alexandra Loras, numa bandeja), a consulesa da França em São Paulo faz um pedido em português perfeito ? idioma que fala assim como francês (língua nativa), inglês, espanhol e alemão. Neste texto, não podemos deixar de citar ?três coisinhas que me revoltam, porque muita gente ainda acha que se trata de mimimi pela igualdade racial?. Alexandra reivindica que a cor nude (tão na moda) reflita o verdadeiro tom de pele da maioria dos brasileiros, ?que não é o bege rosado que a indústria insiste em vender?, pede que xampus para cabelos normais cuidem de cabelos grossos e secos (?como são os fios da maioria da população?) e pleiteia campanhas publicitárias e programas de TV retratando os negros que seja escritas por pessoas negras?. Recado dado.

Pelas palavras que usa, parece que Alexandra, 39 anos, vive há séculos no Brasil. Mas ela só veio para cá em 2012, acompanhando o marido, Damien Loras, cônsul francês em São Paulo.

Foi só no Brasil que ela começou seu trabalho de ativista; antes de vir para cá, trabalhou como jornalista na TV francesa, fez mestrado em mídia na Sciences Po, conheceu, se apaixonou e acompanhou o marido pelo mundo; deu à luz Raphael, hoje com 4 anos. Foi no Brasil, promovendo festas regadas a champanhe no casarão consular no bairro Jardim Europa, que viveu pela primeira vez ?o preconceito acompanhado de tanta desigualdade social?. Alexandra já perdeu as contas de quantas vezes a recepcionista do clube que frequenta olha seu nome da lista de acompanhantes e não sócios, confundindo-a com uma babá de Raphael (e nem babá o menino tem). Foi barrada num hotel de luxo em Salvador, ?justo a capital mais negra do Brasil?. Nas festas em sua casa, quase sempre um convidado lhe dá um casaco para ser pendurado.

? Acham muito estranho uma mulher negra na alta sociedade ? conta ela, que começou a se ?envolver mesmo? com o ativismo: ir a escolas, trabalhar com refugiados, fazer palestras.

Propõe sempre um exercício, pedindo para a plateia imaginar um mundo onde todas as referências (os super-heróis, as divas do cinema, os políticos) sejam negros. E aí faz a pergunta: como você, branco, se sentiria?

? O racismo é uma coisa atroz. Quando atinge, ele nos paralisa.

Mesmo estudando e lidando com todas essas questões, Alexandra diz que não consegue ter a reação desejada quando episódios assim acontecem com ela.

INFOCHPDPICT000059191065Por uma ?ironia do destino?, Raphael nasceu branco, obrigando-a a revisitar episódios de sua própria infância. A mãe, francesa de origem judaica, teve cinco filhos, todos com homens brancos; menos ela, única filha da mãe com um negro. O pai, Samuel Baldeh, mudou-se da Gâmbia para a França, chegou a ser morador de rua e morreu quando Alexandra tinha 15 anos; sofria de alcoolismo. Conviveu pouco com o pai. Apesar de na França também ter sofrido preconceito (?Ninguém entendia como eu era negra naquela família?), conseguiu estudar e ascender socialmente ? algo, segundo ela, muito mais difícil para um negro no Brasil.

Raphael estuda numa escola privada e só tem amigos brancos. Outro dia, Alexandra o flagrou ?um pouco incomodado?, dizendo que a governanta da casa (que veste roupas coloridas e não roupa branca nem uniforme) era negra.

? Ele já tem um estranhamento dentro dele, e não tenho solução sobre como resolver isso. Talvez eu não consiga com o Raphael, mas trabalho para que a sociedade ao redor dele mude.

No fim de junho, e com patrocínio de marcas como Avon e Hotel Unique, Alexandra promoverá uma série de palestras em São Paulo só feitas por negros em carreiras de destaque. Os profissionais vão falar sobre seu dia a dia e o que sentem no mercado de trabalho. Vem fazendo palestras para empresas como Unilever, Google, J P Morgan, aparecendo em programas de TV. Foi convidada (e topou) posar nua para o Projeto Meias do Bem, para arrecadar meias a serem dadas a moradores de rua de São Paulo. Foi destaque na escola de samba Vai-Vai deste ano, cujo enredo homenageou a França. Como não tem babá e ?somente o staff necessário para cuidar de uma casa desse tamanho?, leva Raphael a tiracolo quando visita as quadras da escola de samba e os refugiados.

? Muitas vezes, são os únicos negros com quem ele convive. Em vários eventos, sou apenas Alexandra Baldeh (nome de solteira) e não Loras, não quero misturar as coisas, são dois trabalhos diferentes.

O marido tem o maior orgulho dela, e Alexandra parece conciliar bem os ?rompantes machistas? que ?quase todo homem francês tem?.

INFOCHPDPICT000059191086? Ela ajuda sem julgar. Fez uma carreira bonita, em paralelo com tudo o que uma consulesa deve fazer também. Faz muita coisa e ocupa um espaço só dela ? diz Damien, que veio no corpo diplomático de Nicolas Sarkozy e ficou no de François Hollande; a família deixará o Brasil em setembro porque ele assumirá a missão francesa da ONU em Nova York.

Alexandra, que ama arroz com feijão e as marcas cariocas Farm e Lenny, nem fala em despedidas ?porque já tenho mil compromissos aqui depois disso?. Pensa em criar uma fundação com tanto que esse trabalho já rende, inclusive financeiramente:

?Algo inesperado. Há alguns meses tive que contratar uma assessora para cuidar da minha agenda.

A amiga Paola Orleans e Bragança fala da ?companhia gostosa? da consulesa, ?que joga uma bomba de beleza e confiança por onde passa?. Juntas, exploram restaurantes de São Paulo, vão a festas (várias na residência dos Loras), passam os fins de semana na elegantérrima Fazenda Catuçaba, do amigo em comum, o francês Emmanuel Rengade, dono também da Pousada Picinguaba. Adora passear pela Serra da Cantareira e comer no Velhão, ?um restaurante com alma?.

? Além disso, tem uma basílica, a Nossa Senhora do Rosário, que parece a Catedral de Chartres. Meu filho acha que é um castelo. Ah, vou sentir saudades de morar no Brasil, mas eu voltarei sempre.