Há certos sentimentos que se perdem facilmente quando traduzidos para um estrangeiro. Ouvir um venezuelano falar em ilusión pode remeter, para boa parte do mundo, às expectativas afundadas pela crise econômica e política que assola o governo de Nicolás Maduro, sucessor do bolivarianismo que trouxe alguns avanços sociais com Hugo Chávez. Do mesmo modo, a ilusión na Copa América soa como o prenúncio de mais um fracasso da seleção que ocupa a lanterna nas eliminatórias da Copa do Mundo de 2018. Mas o falso cognato engana.
A surpreendente Vinotinto, como é chamada a seleção da Venezuela, conseguiu vitórias sobre Jamaica e Uruguai, além de um empate com o México, para chegar às quartas de final. Enfrenta a Argentina, neste sábado, às 20h, em Foxborough (EUA), por uma vaga na semifinal. O Sportv transmite. O combustível da zebra da Copa América é justamente a ilusión, palavra que em castelhano significa sonho, esperança.
Nosso país passa por momentos fortes. Somos uma esperança para todos. As pessoas mandam cartas e nos agradecem pela alegria trazida nas vitórias, muitas não estão passando bons momentos. Por isso vamos tão motivados ao campo declarou, em entrevista coletiva, o atacante Josef Martínez, autor do gol da vitória sobre a Jamaica.
O jornalista venezualno Pablo López Hurtado lembra que, embora a ilusión com esta Copa América Centenário fosse quase nenhuma, a seleção havia se acostumado a ilusionar, a sonhar alto na última década. Na Copa América de 2007, disputada na Venezuela, os anfitriões chegaram às quartas de final. Em 2011, o desempenho foi ainda melhor: a queda só veio na semifinal, e nos pênaltis, contra o Paraguai. A Vinotinto parecia, aos poucos, abandonar a fama de saco de pancadas na América do Sul. Faltou pouco para uma classificação inédita à Copa do Mundo, em 2014: a seleção vinha forte na zona de classificação das eliminatórias, mas só venceu um dos últimos quatro jogos e acabou em sexto, apenas uma posição abaixo da repescagem.
DERROCADA DO PAÍS E DA SELEÇÃO
A partir daí, a derrocada da seleção guarda paralelos com o descontrole da crise no país. Uma forte queda nos preços internacionais do petróleo afetou a principal empresa do país, a petroleira estatal PDVSA, e foi um dos fatores que empurraram ladeira abaixo a economia como um todo. A seleção também sentiu o baque, já que a PDVSA é sua principal patrocinadora. Nicolás Maduro, que assumiu a presidência em 2013 após a morte de Hugo Chávez, enfrenta denúncias de corrupção e autoritarismo características também da gestão de Rafael Esquivel na federação venezuelana de futebol (FVF). Esquivel foi preso em maio de 2015, na operação do FBI que buscou dirigentes em Zurique, na Suíça.
Esquivel era o homem-forte e comandava a federação como um negócio próprio. Às vezes, quando ingressava pouca verba, ele mesmo colocava dinheiro. Seus homens continuam à frente da federação, mas sem a mesma capacidade para suportá-la economicamente. O principal patrocinador (PDVSA) está em crise, e por isso não tem colocado o dinheiro necessário listou Hurtado, em contato por telefone com O GLOBO.
O desempenho nas eliminatórias para a Copa do Mundo de 2018, que começaram cinco meses após a prisão de Esquivel, é fraquíssimo: cinco derrotas e um empate em seis jogos. O treinador Noel Sanvicente não resistiu e foi trocado por Rafael Dudamel em março deste ano. Nesse meio-tempo, os principais jogadores da Vinotinto como o atacante Rondón, que joga no West Bromwich (ING), e o capitão Rincón, do Genoa (ITA) escreveram um manifesto com críticas à corrupção dos dirigentes da federação, e ameaçaram abandonar a seleção.
A insatisfação não se limita aos jogadores. Nas partidas da Vinotinto na Copa América Centenário, disputada nos EUA país demonizado pelos governos socialistas da Venezuela, por ser o centro do capitalismo mundial , não é incomum ver cartazes com críticas ao governo Maduro. Muitos venezuelanos, seja por questões econômicas ou perseguições políticas, deixaram o país rumo ao sonho americano. O último censo dos EUA, de 2015, aponta uma presença de 250 mil imigrantes venezuelanos, número 138% maior do que havia em 2000.
Há muitos venezuelanos que estão em exílio mas continuam se importando com seu país. A Copa América é uma oportunidade de aparecer e protestar, algo que seria impossível na Venezuela afirmou Manuel Malaver, jornalista e analista político venezuelano, ao GLOBO.
IMPACTO DA SELEÇÃO NÃO É CONSENSO
Malaver não se sensibiliza com o conto de fadas que a seleção da Venezuela tenta escrever na Copa América. Para o analista político, há assuntos mais urgentes que monopolizam a atenção do povo venezuelano.
O futebol carrega uma marca social e cultural, mas isso aparece em países que têm uma vida normal, como o Brasil. Aqui, na Venezuela, fica em segundo plano. Tivemos 1000% de inflação anual. Agora mesmo, enquanto conversamos ao telefone, sei que há pessoas fazendo fila por um pacote de farinha. Cerca de 70% da população está sofrendo com questões fundamentais para a vida civilizada argumenta Malaver.
Hurtado, por sua vez, pensa diferente. Embora reconheça que a alegria trazida pela campanha na Copa América Centenário não traz soluções para os problemas do dia a dia, o jornalista considera palpável o efeito da seleção no estado de ânimo da população.
Não há muitos jornalistas que foram aos EUA, mas as pessoas comentam bastante a campanha. A seleção é uma espécie de refresco nesta situação difícil acredita Hurtado, que faz um alerta: a grande prova de fogo da Venezuela acontece na noite deste sábado.
Depois que vencemos o Uruguai, as pessoas começaram a ter esperança. Mas é uma euforia progressiva. A seleção gerou emoção, surpresa, mas tudo depende do que vai acontecer contra a Argentina. Seria uma alegria passar à semifinal.