Esportes

Nos Jogos de Los Angeles-1984, domínio americano e paixão olímpica

Para quem penara quatro anos antes, em Moscou, toureando a língua russa, o alfabeto cirílico e a vigilância neurastênica da União Soviética, cobrir uma olimpíada na Califórnia era como chegar à Disney. Tudo mastigado. “Welcome”, diziam os painéis espalhados por toda Los Angeles, em idioma compreensível e alfabeto decifrável. Vai ser fácil, pensei, já me considerando uma veterana, embora fosse só minha segunda experiência olímpica.

E vai ser divertido. O efeito surpresa de um homem-foguete vestido de branco, surgindo no ar e pousando suavemente no gramado do Coliseu perante quase 100 mil espectadores, deu o tom. Aquela era a terra de Ronald Reagan, o ex-ator eleito presidente da República, cujo deleite com a cerimônia de abertura nada tinha de protocolar.

A partir daí, mesmo quem nunca prestara atenção no hino nacional dos EUA não conseguia mais escapar dos acordes do “Star-spangled banner”. Ecoavam por todas as arenas, ginásios, estádios ou piscinas onde se disputavam as 220 provas dos 21 esportes olímpicos de 1984 — o país anfitrião levou mais da metade das medalhas de ouro disponíveis.

Para mim foi um alívio deixar de ser um asteroide solitário solto no espaço olímpico, como em Moscou. Entre os 9.100 bípedes que ostentavam credenciais de mídia nos Jogos de 1984 (jornalista adora credencial), dois agora faziam parte da mesma equipe que eu. Um deles era o bem-humorado escriba Augusto Nunes. Além de zeloso guardião das regras mais complexas da língua portuguesa, também era fino conhecedor de todos os esportes coletivos — o que resolvia parte de minhas deficiências. O outro era o silencioso e perceptivo fotógrafo Orlando Brito, que sabia ver muito além de suas lentes zoom. No fundo, Brito sempre fora um repórter agudo com olho de fotógrafo, ou vice versa — fotógrafo agudo com ouvido de repórter. Uma beleza.

Constatação feita logo nos primeiros dias: numa olimpíada você não trabalha menos quando divide tarefas, na melhor das hipóteses você apenas trabalha melhor. Porém, a cada edição você trabalha mais, apesar da tecnologia avançar a seu favor. Até hoje, passadas quase dez edições, ainda não consegui decifrar essa equação.

Nossa primeira refeição completa e demorada, no Pacifica Hotel de Culver City, onde aportamos cheios de ilusões, acabou sendo a única ao longo dos 15 dias das competições. O resto foi, basicamente, fast food, o que espelhava o espírito McDonald’s dessa edição utilitária dos Jogos.Estava previsto que os soviéticos revidariam na mesma moeda o danoso boicote imposto pelos EUA à Olimpíada de Moscou, em 1980. Alegando falta de segurança na cidade-sede marcada por guerras de gangues, e apontando o danoso índice de poluição local para os pulmões de seus atletas, a URSS esnobou Los Angeles. Protestos contra a inédita admissão de competidores profissionais nos Jogos, e contra a instalação de novos mísseis americanos na Europa, também fizeram parte do balaio de desculpas para a não participação de atletas de 16 países socialistas, além do potentado soviético. Apenas a Iugoslávia e a Romênia, que chegaria em segundo lugar no cômputo final de medalhas, não aderiram ao diktat.

Organizar Jogos numa ditadura é fácil: os mandantes mandam, os comandados cumprem, e executam-se as obras não importa o custo. Em regimes de longa tradição democrática, os critérios são outros. Informados de que as populações das cidades-sedes anteriores continuavam pagando impostos para cobrir pesados rombos, os contribuintes de Los Angeles vetaram, em plebiscito, o uso de dinheiro público no custeio dos Jogos.

Mas se os XXIII Jogos de Verão não pudessem ser em Los Angeles, eles simplesmente não ocorreriam, visto que nenhuma outra cidade do mundo havia se candidatado a sediá-los. Daí nasceu o plano B: uma olimpíada inteiramente financiada pela iniciativa privada, administrada por um comitê de 62 empresários e amplo leque de profissionais — médicos, advogados, pastores, agentes da sociedade civil. Presidido por Peter Ueberroth, arrojado self made man da indústria do turismo, o comitê convenceu primeiro as empresas locais a entrarem no negócio; depois, grandes conglomerados, como o McDonald’s, que construiu o parque aquático de U$ 4 milhões; por fim, vieram as multinacionais estrangeiras.

Gastou-se pouquíssimo (cerca de U$ 500 milhões, contra os U$ 9 bilhões despejados em Moscou pelo Kremlin, ou U$ 25,9 bilhões em valores de hoje), e no final ainda teve superávit de U$ 223 milhões — algo que jamais ocorrera nem voltaria a ocorrer. Como lembrou Maurício Cardoso em seu livro “De Atenas a Atlanta”, “tudo o que era olímpico passou a valer dinheiro”. Pela primeira vez o revezamento da tocha foi transformado em evento comercial e teria um patrocinador à parte.

Como a ordem era economizar, construiu-se pouquíssimo e aproveitou-se o que já existia. A cidade já tinha um estádio de futebol, o Rose Bowl, instalações para iatismo e vôlei na vizinha Long Beach, o monumental Coliseu, que fora sede do atletismo nos Jogos de 1932, e os convenientes dormitórios da UCLA para abrigar os 7.078 atletas de 141 nacionalidades. Essa universidade, por sinal, revelou-se uma potência esportiva maior que 90% dos países presentes. Sozinhos, os atletas da UCLA conquistaram mais medalhas para o seu país do que a delegação da França inteira.

Coube à IBM recepcionar a chamada família olímpica (atletas, dirigentes, mídia, juízes, técnicos) com o embrião de uma novidade. Ela foi tão revolucionária que muitos dela fugiram, de medo. A empresa havia montado um banco de dados contendo as informações essenciais sobre cada participante, e instalou terminais com acesso a esses dados em todos os locais de competição, centros de imprensa, na vila dos atletas e hotéis oficiais. Na chegada, cada credenciado recebia uma senha individual para poder entrar no sistema e, por toda parte, voluntários se revezavam ensinando o passo a passo aos estreantes.

Foi o início do imenso fosso tecnológico que viria separar alfabetizados de analfabetos digitais em Olimpíadas. Quem vinha de países ou redações em que o processo de informatização dos anos 1980 (da máquina de escrever para o computador) já estava em curso, saudou a ferramenta com empolgação. Mas para quem ainda não começara a migrar de tecnologia, foi impossível aprender a novidade nas duas semanas de duração dos Jogos. Era uma batalha constrangedora e penosa ver jornalistas gabaritados do terceiro e do quarto mundos se sentirem, de supetão, incapazes e excluídos.

A novidade da IBM também incluía um rudimentar sistema de envio de mensagens entre olímpicos, facilitando o pedido de entrevistas e o contato com atletas naquela era ainda distante do telefone celular. A descoberta desse recurso e a afoiteza de alguns atletas em disparar mensagens calientes antes de dominar a ferramenta causaram mais de um quiproquó. O talentoso e extrovertido meio-fundista brasileiro José Luís “Zequinha” Barbosa (sexto colocado nos 800 metros em Seul e quarto em Barcelona) foi um dos mais assíduos trapalhões na modalidade.

O Brasil desembarcou em Los Angeles com 151 atletas. Sobre dois deles recaíam as expectativas de ouro mais realistas, ambas nos dois esportes considerados eixos fundamentais de uma Olimpíada: o atletismo e a natação. As trajetórias do nadador paulista Ricardo Prado e do meio-fundista brasiliense Joaquim Cruz constam, hoje, de qualquer almanaque básico do esporte nacional, com ênfase nas histórias de superação e final feliz. No mundo inteiro narrativas edificantes de atletas olímpicos são celebradas à exaustão.

No caso dos dois cabe apenas repetir, aqui, que ambos chegaram até Los Angeles vestindo o uniforme que o Brasil pouco ou nada fizera pelos atletas tão excepcionais que lhe deram envergadura. Ambos construíram suas carreiras sozinhos, longe do país, sem qualquer estrutura de apoio nacional. No caso de Pradinho, o apelido que colou no atleta de 1m65 de altura que dobrava de tamanho na prova dos 400m medley, rigor, disciplina e sustentáculo moral vieram de família. No caso de Joaquim, o voo solo com anos de desterro e treinamentos insanos nos Estados Unidos só fora possível pela teimosia radical de um técnico marrento chamado Luiz Alberto Oliveira. Apesar de nada deverem ao Brasil, queriam tanto, mas tanto, subir ao lugar mais alto do pódio como brasileiros. Olimpíada é isso, também.

Na segunda-feira, 30 de julho, para a largada da final da prova dos 400 metros quatro estilos (medley), o canadense Alex Baumann subiu no bloco de largada da raia 4 com a folha de bordo vermelha da bandeira tatuada no corpo. Um brinco de diamante na orelha esquerda também chamava a atenção. Um mês antes, Baumann tinha superado o recorde mundial estabelecido pelo brasileiro em Guayaquil em 1982. Competição à vista, portanto.

Na raia 6, Pradinho largara com sólida vantagem no nado borboleta, manteve a liderança no nado costas, parecendo deslizar sobre a água, sucumbiu no estilo peito (o mesmo que em Londres 2012 catapultaria Thiago Pereira de quinto para segundo lugar) e não conseguiu recuperar na parcial final do nado livre. Embora tivesse feito o melhor tempo da carreira, não foi o bastante para vencer Baumann, que o atropelou, bateu o recorde mundial e deu ao Canadá seu primeiro ouro em 72 anos.

Seguiu-se um frisson interminável na sala em que medalhados concedem entrevistas coletivas após as provas, porque Baumann simplesmente sumira. Com duas horas de atraso e a boataria solta, a ausência do campeão foi finalmente esclarecida: Baumann não estava conseguindo fornecer a prova de urina necessária para o teste antidoping. Na realidade, ele já estava no seu terceiro copo de cerveja quando os oficiais se deram conta de que o canadense de 19 anos estava infringindo a legislação americana que proíbe bebidas alcoólicas antes dos 21. Passaram então a empurrar-lhe refrigerante.

Prado, que após a conquista da prata aos 19 anos decidiu encerrar a carreira de nadador iniciada aos 4 em Andradina, no escaldante interior de São Paulo, formou-se em Economia e Educação Física nos Estados Unidos. Vencera todas as competições de 400m medley de que participara, menos a olímpica. Hoje, gerencia o planejamento de todas as competições aquáticas da Rio 2016. É coisa grande, complexa e coalhada de encrencas para o seu humor ácido e reconhecida inteligência também fora das piscinas.

Exatamente uma semana depois da primeira prata em Los Angeles, o Brasil pôde acompanhar ao vivo, no estádio e pela televisão, a conquista da primeira e até hoje única medalha de ouro de atletismo de pista. Por ter sido campeão mundial juvenil, campeão universitário americano na prova dos 800 metros e segundo ranqueado mundial no ano anterior, Joaquim Cruz desembarcou em Los Angeles assediado e famoso. Por isso mesmo, mantinha-se ainda mais retraído, arredio e isolado do que de costume. Estava com 21 anos e saíra da cidade-satélite de Taguatinga para a América como garoto xucro, sem traquejo social ou educação formal continuada. Em consequência, foi aprendendo a falar inglês menos mal do que o português, levando-o a medir muito as palavras.

A final dos 800 metros na segunda-feira, 6 de agosto, foi um épico, mesmo para quem não torcia pelo brasileiro. Roga-se ao leitor que invista 1m43s de sua vida para assistir a um dos vídeos de atletismo mais belos da história do esporte. Na saída da última curva (são duas voltas olímpicas), Joaquim abriu a passada entre estrelas como Sebastian Coe e Steve Ovett e arrancou. O porte altivo com que cruzou a linha de chegada, cinco metros à frente de um esbaforido Coe, levou uma assinatura adicional: novo recorde olímpico.

Estava com 21 anos de idade. Nos Jogos de Seul, em 1988, ainda conquistou uma medalha de prata, e em Atlanta foi porta-bandeira. No mês passado, aos 53 anos, Joaquim Cruz cruzou sua Taguatinga natal carregando a tocha da Rio-2016. Chorou como nunca chorara em público — nem quando ouviu o hino e viu a bandeira hasteada em sua homenagem no Coliseu de Los Angeles, em 1984. Só ele sabe o tanto do que ficara comprimido no seu peito por tanto tempo.

Houve espaço para apenas um astro-rei nos Jogos de 1984 — o americano Carl Lewis, atleta de talento múltiplo sem paralelo no nosso milênio. Usain Bolt empalideceria à sua sombra, exceto em charme, senso de humor, graça e gosto pela vida, é claro.

Apesar de ter cumprido a promessa de ganhar quatro medalhas de ouro, igualando o Jesse Owens dos Jogos de Berlim em 1936 (nos 100 e 200 metros rasos, salto em distância e revezamento 4 x 100), o czar Carl, como era chamado, nunca chegou a conquistar por inteiro o coração do público americano. Era admirado e aplaudido nos estádios, mas não amado fora deles. Por arrogante e amuado. Eletrizava nas pistas sem compartilhar alegria.

Já do lado feminino da festa, foi um dique que se rompeu. De uma tacada só mulheres puderam, pela primeira vez, competir como maratonistas. Também abriram-se comportas para recebê-las em provas de 3 mil metros e 400 metros com barreiras, no ciclismo de estrada e competições de tiro. E ainda foram criadas modalidades só para participantes femininas, como ginástica artística e nado sincronizado.

Mas foi na maratona feminina de Los Angeles, longa reivindicação de atletas havia décadas, que o esporte deixou marca indelével. Quando a americana Joan Benoit adentrou o Coliseu radiante e soberana à frente de 49 outras competidoras, ela retirou da cabeça o boné com que percorrera os 42 km para melhorar saborear o momento e atravessou a linha de chegada em 2h24m52. Ovacionada.

Uma a uma, outras maratonistas foram concluindo a disputada prova até embicar na pista do estádio a figura cambaleante da suíça Gabriela Andersen-Schiess, de 39 anos. Com uma das pernas puxando o corpo para um lado, um braço teso esticado na direção oposta e a cabeça caída, a atleta levou quase seis minutos de passo trôpego para alcançar a linha de chegada. Ao não permitir que os médicos da competição a assistissem para não ser desclassificada também teve seu momento de fama pela tenacidade quase fatal. Na verdade, sendo instrutora de esqui e não maratonista, ela por pouco não provoca um retrocesso na demonstração de que a mulher atleta tinha direito a correr maratonas por não correr risco físico, como se imaginou ao longo de séculos.

Para o Brasil houve o que comemorar em vários quadrantes. De Long Beach, onde se realizaram as provas de iatismo e os jogos de vôlei, saíram duas medalhas de prata com sabores distintos. A dos iatistas Torben Grael, Daniel Adler e Ronald Senfft na classe Soling foi quase um milagre, somada uma troca de barco de ultimíssima hora — fatal quando em mãos menos habilidosas — e uma lufada de sorte igualmente inesperada pela desqualificação do segundo colocado. Já no vôlei, como no futebol, a prata teve sabor amargo diante das visões prematuras de ouro dos próprios jogadores e da nação inteira, que preparava uma comemoração de arromba. Ao judô que começava a se disseminar no país como esporte popular, uma medalha de ouro e dois bronzes foram indício de colheitas futuras. Ainda assim, doeu ver a desatenção nacional às lutas dos brasileiros nos tatames de Los Angeles. No início da noite em que Douglas Vieira conquistou a prata derrotando um coreano, os únicos brasileiros presentes no ginásio eram dois técnicos e dois jornalistas.

De Los Angeles sobra um baú cheio de deliciosos momentos de gáudio compartilhado. Um dos mais memoráveis durou pouco mais de quatro minutos. Com o Centro Náutico abarrotado de fãs, o público aguardava a prova dos 200 metros nado borboleta para ter a chance de ver, pela terceira vez, o alemão ocidental Michael Gross. Ele compensava sozinho, em parte, a ausência da esquadra masculina da RDA, que aderira ao boicote soviético.

Insolente por treinar pouco, indisciplinado por arriscar contusões jogando futebol, e demolidor na água, Gross pousara em LA precedido pelo apelido Albatroz, por seus 1,99m de altura e 2,09m de envergadura de braços. Já tinha vencido a prova de 200 metros nado livre por dois longos corpos, e repetira o feito nos 100 metros nado borboleta. Dois ouros, dois recordes mundiais.

Faltava a tríplice coroa em sua melhor prova, os 200 metros nado borboleta. Até a primeira metade a disputa corria forte entre ele, o americano Pablo Morales e o venezuelano Rafael Vidal, enquanto um moleque australiano se arrastava na sétima colocação na raia 6. Só que, na virada dos 100 metros, o tal garoto pulou para quinto. E quando faltava apenas a última perna, ele disparou. Por fim, com as arquibancadas incrédulas e já de pé, Jon Sieben, de 17 anos, ultrapassou Gross nas três últimas braçadas e ainda bateu o recorde mundial do alemão por um centésimo de segundo. Nem ele parecia acreditar. Ovacionado, e festejado até mesmo pelos adversários, o adolescente de Brisbane brindou o público com a emoção pura do fator surpresa no esporte.

Saí de Los Angeles com uma mesma sensação que me acompanharia por todas as edições seguintes: a de ter dormido pouco, trabalhado muito, comido mal, não ter visto nada e ter perdido o principal. O alumbramento só começa a se manifestar algum tempo depois, ao fazer a narrativa para amigos. Percebi, então, que estava fisgada, e que gostaria de estar em Seul para os Jogos de 1988.