No planeta-esporte, existem dois hemisférios: duas ideias que, se não chegam mais a ser antagônicas, jamais aceitarão submissão uma a outra. Num desses hemisférios, reina a bola de futebol, com um gigantesco quadro de Pelé ao fundo, tendo à frente um trono em que Cristiano Ronaldo e Messi se alternam, numa dança das cadeiras reconhecida por bilhões. No outro hemisfério, que jaz no coração da maior potência geopolítica do mundo, capaz de ditar uma história que faz sentido mesmo quando o resto do mundo não participa – beisebol e basquete se curvam ante a lembrança de um outro Atleta do Século Passado, um homem que se autoconstruiu com punhos de cimento, pernas de bailarino e um fogo no olhar que inspirou gerações.
É até conveniente que Muhammad Ali se despeça do mundo no ano em que Donald Trump distribui sórdidas bravatas contra muçulmanos. Nascido Cassius Marcellus Clay Jr. e convertido ao islã em 1964 – primeiro à Nação do Islã, criada nos Estados Unidos e essencialmente afro-americana, depois à vertente histórica sunita, em 1975 – Ali usou essa conversão como forma de romper com o establishment branco, tornando-se uma das autoridades morais do país, com todo o direito à controvérsia a que um negro pacifista em tempos de Guerra Fria poderia aspirar. Não emprestou seus punhos para combater no Vietnã, e fez disso parte de um grito por igualdade racial.
Assim alinhou-se a um firmamento de divindades demasiado humanas, num imaginário em que Martin Luther King e Malcolm X também constelam – sem os quais, um Barack Obama tardaria muito mais a acontecer. Ver um demagogo que atiça ódios étnicos angariar tanto apoio rumo à Casa Branca seria um retrocesso que o ex-pugilista de 74 anos não precisaria testemunhar.
A história do boxeador negro que arremessou sua medalha olímpica no rio Ohio ao não conseguir um mísero hambúrguer numa lanchonete para brancos é daquelas que transcendem o esporte e despertam nações – e talvez por isso a BBC da pátria do futebol o elevou a Personalidade Esportiva do Século, acima de Pelé, algo que a “Sports Illustrated”, prestigiosa revista americana, já havia feito em 1999.
É nessa chave que a comparação com Pelé começa. Não é mais Maradona, não é Messi, não é o futebol procurando em si gols e arte em busca de um monarca. Tampouco é o garoto-propaganda de hábitos de consumo, com a imagem atrelada a cartões de crédito ou utensílios de cozinha, como sucedeu a seu antagonista na célebre luta no Zaire, George Foreman. Ali teve seus contratos até o fim da vida, mas sua ambição era a de inspirar.
“Gostaria de ser lembrado como um homem que ganhou o título dos pesos pesados por três vezes, que tinha um bom humor e que tratava bem a todos. Como um homem que nunca menosprezou aqueles que o respeitavam, e que ajudou quantas pessoas pôde. Como um homem que defendeu suas crenças a todo custo. Como um homem que tentou unir toda a humanidade através da fé e do amor. E se tudo isso for demasiado, então acho que satisfaria em ser lembrado apenas como um grande pugilista que se tornou defensor e líder de seu povo. Eu nem me importaria se as pessoas se esquecessem de como eu era bonito”, conforme escreveu no livro “Alma de uma Borboleta”, de 2004.
Muhammad Ali também tinha a dimensão de entertainer. Deu entrevistas desconcertantes, criou para si epítetos, desde o óbvio “O Maior do Mundo” até comparações suaves, como a célebre autodescrição de “flutuar como uma borboleta, ferroar como uma abelha” – tipo do discurso quase feminino, que apenas um homem muito seguro de si seria capaz de fazer em seu tempo.
O gigante dos ringues, capaz de suportar todos os rounds de uma luta sob a dor de uma mandíbula quebrada (a vitória de Ken Norton, em 1973), capaz de apanhar até cansá-lo, para depois subjugá-lo (o triunfo sobre George Foreman, em 1974), deu lugar a um humanista que visitava hospitais, carregava meninos amputados no colo, consolando-os com esperança num futuro e dava entrevistas para divulgar suas verdades, sem medo de causar incômodos e embaraços, devido à sua crença férrea em Deus. Como todo ativista, polarizou a opinião pública e ganhou ainda mais desafetos.
Tudo isso ganhou ainda mais doçura quando o gigante trêmulo acendeu a pira olímpica dos Jogos de Atlanta, em 19 de julho de 1996. Dava visibilidade ao mal de Parkinson, maldição degenerativa frequentemente associada às pancadas na cabeça, enquanto concedia dignidade ao símbolo olímpico – o mesmo que desprezou ao arremessar a medalha.
A esta altura, Muhammad Ali tinha um mundo que conspirava contra si. Além do risco Trump para quem é negro e muçulmano, muitos dos pilares de sua carreira fenecem. O boxe sucumbe ante a popularidade do MMA, que entrega carnificina. O grande boxeador negro da atualidade, o meio-médio Floyd Mayweather, aposentou-se sob o apelido de “Dinheiro” e faz questão de ostentar agressivamente, enquanto seu estilo pode ser descrito como excessivamente tático, sem espaço para borboleteadas. A disputa de título dos pesados mais magnética dos últimos anos se dará entre dois brancos em 9 de julho, entre o britânico Tyson Fury e o desafiante Wladimir Klitschko, da Ucrânia. Haverá homenagens, sem dúvida, mas elas nos lembrarão de que o ringue é um lugar pequeno demais para confinar a história de um peso pesado da humanidade. Ao fim, a borboleta pousa nas consciências, num funeral que pode tocar as urnas dos EUA como jamais se imaginou a esta altura.
CARTEL:
Lutas – 62
Vitórias – 57
Nocautes – 37
Derrotas – 5