RIO – Daqui a dez dias, quando mais de 200 delegações desfilarem no Maracanã, um grupo de dez atletas não carregará a bandeira de nenhum dos países participantes das Olimpíadas. Mas, ao mesmo tempo, representarão uma verdadeira nação formada por 21 milhões de pessoas. Eles formam o time de refugiados, o primeiro desse tipo a disputar os Jogos, montado pelo Comitê Olímpico Internacional (COI) para transmitirem ao mundo uma mensagem de esperança. Vêm da Síria, República do Congo, Sudão do Sul e Etiópia. Trazem na bagagem histórias de superação e familiares perdidos na corrida pela sobrevivência.
Ramis, Yiech, James, Yonas, Anjelina, Rose, Paulo, Yolande, Yusra e Popole entrarão logo antes do time brasileiro, sob a bandeira dos anéis olímpicos. Antes de realizarem o sonho, passaram por desafios que ainda guardam na memória, como narra um longo perfil publicado pela revista ?Sports Illustrated?. O corredor Yiech Pur Biel, do Sudão do Sul, por exemplo, teve de abandonar a família quando tinha apenas 10 anos e viu o local onde cresceu completamente destruído pela guerra civil. Já a nadadora síria Yusra Mardini, uma das estrelas do nado livre no país arrasado por conflitos, teve de usar um bote inflável para fazer a mesma travessia que quatro milhões de conterrâneos fizeram nos últimos anos, em direção à Europa. O motor do barco parou de funcionar e a atleta precisou seguir fazer parte do caminho pelo Mar Egeu a nado. A experiência provocou um sentimento improvável para qualquer apaixonado por esportes aquáticos: ?Passei a odiar o mar depois disso?, disse Yusra, em uma coletiva de imprensa em março.
NADADORES SÍRIOS EM FUGA PARA A EUROPA
Yusra Mardini não é a única representante síria do grupo de refugiados olímpicos. Seu compatriota Rami Anis, também nadador, especializado na modalidade borboleta, fez o mesmo caminho em 2011, em direção à cidade turca de Istambul. Levava dois pares de calças, duas camisetas e duas jaquetas. Entre a Turquia e a Bélgica ? onde conseguiu abrigo definitivo ? passou por pelo menos seis países, e chegou a precisar pagar para ser transportado ilegalmente até a Grécia. Mas, assim como Yusra, ele lembra que nada foi pior que a passagem pelo mar.
? A parte do mar foi a pior. Como nadador, estava preocupado porque iríamos pegar uma balsa com crianças e idosos. Você tem que imaginar tudo. E se o barco virar? É claro, não iria só nadar para salvar minha vida… Tentaria ajudar o máximo de pessoas possível. Foi terrível passar por essa experiência. Que bom que passou ? recorda Anis, em entrevista a ?Sports Illustrated?.
SUDANESA: ?SOU ORGULHOSA DE SER UMA REFUGIADA?
Da pequena delegação de refugiados, metade vem do Sudão do Sul. Não é por acaso. Um relatório da Organização das Nações Unidas (ONU) concluiu que a situação no país mais jovem do planeta, fundado em 2011 em um contexto de guerra civil, tinha ?uma das situações de direitos humanos mais horrendas no mundo?. A corredora Anjelina Nadal Lohalith, dos 1.500 metros, já sente o peso de representar as histórias de refugiados.
? Ninguém pode se sentir feliz quando é perseguido ou vai para outro país. Mas agora eu me sinto orgulhosa. Estou orgulhosa de ser uma refugiada ? diz a atleta. ? Estamos representando milhões de refugiados em todo o mundo. Talvez, daqui a alguns anos, eu represente a mim mesma. Mas, nesse momento, somos a luz deles. Onde quer que estejam, pelo menos agora eles vão ter algum incentivo e saber: ?Você pode fazer algo?. Onde quer que estejam, eles são seres humanos. Não são animais. É por isso que ganhamos essa chance, para que eles não sejam deixados para trás, ou tratados injustamente.
A injustiça, no entanto, marca a trajetória de Anjelina e de seus quatro compatriotas no time de refugiados. O corredor James Nyang Chiengjiek, dos 800 metros, teve seu pai morto em 1999 durante a guerra. Precisou sair de seu vilarejo aos 13 anos, para não ser sequestrado por soldados, que já haviam pego dois de seus amigos. Os caminhos da vida o levaram ao centro de treinamento da lenda do atletismo Tegla Lourupe, no Quênia. Durante a entrevista, ainda no CT, à ?Sports Illustrated?, Chiengjiek recebeu a notícia de um colega: mais uma batalha havia irrompido no país de origem.
? Não, não, tudo bem ? disse ele, concluindo o que anos de conflitos o ensinaram. ? Depois disso tudo, a luta vai acabar.
?NEM SABIA O QUE ERA RIO?
O centro de Tegla Lourupe recebeu todos os cinco sudaneses integrantes do time de refugiados. A instalação conta com o básico para atender os atletas. Cada quarto comporta quatro pessoas. Uma solução inusitada foi encontrada para economizar na alimentação: uma vaca fornece o leite necessário para suprir a dieta diária dos esportistas.
Boa parte dos que treinam lá não tem ideia do que esperar do futuro. E isso vale para os membros da equipe olímpica. A corredora Rose Lokonyen lembra da sua reação quando lhe perguntaram sobre sua ida para os Jogos:
? Eles nos perguntaram: vocês vão para o Rio? Eu nem sabia o que era Rio.
?VI QUE ERA O FIM DA MINHA FAMÍLIA?
Também do Sudão do Sul, o corredor Yiech Pur Biel ainda guarda na memória os episódios que fizeram sua família desaparecer em meio ao caos. Em 2005, quando ele tinha só 10 anos, fugiu com sua mãe, duas irmãs e um irmão mais novo. Seu pai já tinha feito o mesmo. Tudo piorou quando sua mãe, depois de três dias de fuga, fez uma decisão difícil. Com três crianças para cuidar, ela teria alguma chance de sobreviver. Com quatro, nem tanto. O mais velho dos irmãos, Yiech foi escolhido para seguir com uma desconhecida.
? Quando eles nos atacaram, vi que era o fim da minha família ? lembra o atleta.
Refugiados OlímpicosO momento mais doloroso, narra o corredor, no entanto, ainda estava por vir. Ele se lembra de chorar quando foi abandonado pela família ? que nunca mais voltou a ver ?, mas ficou devastado quando conseguiu retornar à sua cidade e viu que tudo estava destruído pela guerra:
? Eles queimaram tudo. Não tinha nada. O vilarejo tinha sumido, levaram os animais, até mataram alguns. O exército tinha ido embora. Tudo que restou foram pessoas mortas.
Por 24 horas, o menino ficou esperando a sua vez de morrer. Àquela altura, havia se perdido da mulher a quem sua mãe o confiara. Seu nome era Rebecca Nyagony Chuol, seu marido havia sido morto no conflito. Mas, depois de tudo, Yiech soube que não ficaria para trás.
? Estamos indo. Mas não acho que sua mãe voltará. E não vamos deixar você aqui ? disse Rebecca, naquele dia, antes de embarcar a criança no caminhão em direção a Kakuma, o início da sua jornada rumo a um lar seguro, e, no fim, às Olimpíadas.
JUDOCA CONGOLÊS QUER REENCONTRAR FAMÍLIA
Uma guerra civil de cinco anos matou mais de 5,4 milhões de pessoas na República Democrática do Congo. A mãe do judoca Popole Misenga está nas estatísticas. O atleta e a compatriota Yolande Mabika representam o país no time de refugiados nos Jogos. Eles chegaram ao Rio em 2013 para o campeonato mundial e nunca mais deixaram a cidade.
Segundo a ?Sports Illustrated?, Mabika, separado da família ainda criança, tem uma expectativa que vai além do pódio com as Olimpíadas: que as transmissões da competição possam ser vistas pelo seu pai, mãe ou irmão, possibilitando um reencontro.
ETÍOPE: ?ESTOU AQUI E TENHO SORTE?
A atual crise de refugiados é a pior desde a Segunda Guerra Mundial. O COI tinha isso em mente quando montou o time olímpico. A equipe montada pelo comitê foi recebida por treinadores de cinco países, inclusive o Brasil. A ideia é que o trabalho seja estimulado. Em setembro passado, a entidade autorizou o repasse de US$ 2 milhões para patrocinar o centro de treinamento de Tegla Loroupe, no Quênia, por exemplo.
? Precisamos lembrar (as pessoas) que o esporte é uma ferramenta única para melhorar a sociedade. Isto é um tipo de esperança para algumas pessoas, que nos traz de volta às raízes ? diz o vice-diretor de relações com o movimento olímpico do COI, Pere Miró, destacando as origens das Olimpíadas.
A reportagem da ?Sports Illustrated? pondera que o movimento vem a calhar, se contrapõe aos problemas enfrentados pela organização dos Jogos. ?Um cínico poderia chamar isso de um golpe de marketing genial?, destaca o texto, lembrando questões como a crise fiscal do Rio, o vírus Zika e a ausência de atletas importantes. Mas analisa: ?Um pouco de programa humanitário, de encontro aos ideais do Barão Pierre de Coubertin, certamente não faz mal?.
Para o maratonista Yonas Kinde, da Etiópia, é a a chance de viver uma história diferente. Ele é um dos 160 mil etíopes afetado por um conflito de longa data no país. Desde 2011, tem vivido em Luxemburgo, treinando e dirigindo um táxi.
? Deixei o país por causa de problemas políticos. Mas estou aqui e tenho sorte ? diz o atleta.