Não se trata de uma casa tão vigiada quanto a do famoso programa de TV. Muito pelo contrário: a distância dos holofotes foi um dos fatores que pesou na decisão, tomada em 2014, de levar a equipe masculina brasileira de canoagem para Lagoa Santa (MG), pequena cidade nas imediações de Belo Horizonte. E o clima familiar que surgiu na residência dos atletas, entre Isaquias Queiroz e Erlon Souza, agora medalhistas olímpicos, com o técnico espanhol Jesus Morlan e os canoístas Ronilson Oliveira e Nivalter de Jesus, também integrantes da equipe, mostrou-se fundamental para a conquista de duas pratas e um bronze pela canoagem brasileira na Olimpíada do Rio. Isaquias 20-08
A relação abre margem até para uma interpretação benevolente da expressão “Big Brother”, que dá nome ao reality show da casa vigiada 24h por dia. Em tradução literal, significa “Grande Irmão”, termo cunhado pelo escrito britânico George Orwell para o universo distópico do livro “1984”. Na versão de Lagoa Santa, os atletas tornaram-se “grandes irmãos”, sempre sob a batuta firme do técnico Morlán, fissurado por manter uma rotina de treinamentos adequada antes da Olimpíada.
? Um sistema de rotina acaba criando disciplina. Quando começamos na casa ficou muito bagunçado, é claro, porque era morar em uma casa só de meninos. Mas a gente conseguiu colocar uma ordem. Dividíamos responsabilidades para cada um na casa, como tirar o lixo ou ajeitar a caixa d’água, para que aprendessem a contar uns com os outros. Isso é o que acontece nos treinamentos para os Jogos Olímpicos: você faz tudo seguindo uma rotina, o mesmo todos os dias. É tudo menos engraçado. Chega um ponto em que, se você não é paciente ou não entende o esporte, começa a pensar que é uma perda de tempo. Porque é sempre o mesmo ? avalia Morlán.
Na casa de Lagoa Santa, cada atleta tem seu quarto individual. Há um cozinheiro que prepara um cardápio para cada atleta, seguindo a cartilha da equipe de nutricionistas do Comitê Olímpico do Brasil (COB). O planejamento individualizado, por sinal, é algo que traz orgulho ao técnico Morlán, que gosta de tirar uma parte do dia para atualizar os relatórios de desempenho de cada atleta e enviar por computador ao gerente de performance do COB, Jorge Bichara. Isso, é claro, quando os canoístas deixam:
? O Jesus, não sei por que ele colocou aquilo na porta do quarto dele, uma placa de “Não perturbe”. Não adianta nada. Eu já desço a escada correndo, gritando “Jesus, ô Jesus!”. Já bato na porta, ele me pergunta o que foi, eu digo: “Não, só queria saber disso aqui e disso aqui”. E ele fica: “Você me perturbou para isso?”. É muito engraçado ? diverte-se Isaquias, que garante, por outro lado, saber o equilíbrio certo entre brincadeira e seriedade.
? Lógico que em campeonato a gente muda, fica mais sério. Mas acho que o que motiva a gente, a nossa equipe, é essa comunicação, essa diversão, essa brincadeira ? diz o canoísta, de 22 anos.
? Te garanto que é uma total bagunça porque todo mundo é feliz, todo mundo brinca ? emenda Erlon Souza, de 25 ? Quando um te vê quieto o outro já pula em cima de você, já começa a fazer bagunça. É uma casa de doido ? completa o canoísta, que eventualmente recebe visitas da esposa, Rosângela, e da filha Laralis, de 1 ano e dois meses.
GRANDE FAMÍLIA
O clima de descontração geral, pontuado por momentos de seriedade quando se exige, permite até outra licença poética com programas de TV. “A Grande Família” de Lagoa Santa tem o técnico Jesus Morlán como instância que controla e canaliza a energia de seus quatro meninos: além de Isaquias e Erlon, integram a delegação Nivalter de Jesus, de 28 anos, que já foi campeão mundial na C1 500m, em 2010, e participou da Olimpíada de Pequim-2008; e Ronilson Oliveira, de 26, dupla de Erlon desde os tempos de treinos pelo Flamengo, na Lagoa Rodrigo de Freitas, em 2010.
Ronilson e Erlon disputaram na canoa dupla (C2) 1000m os Jogos de Londres-2012. A tendência era que o conjunto se repetisse na Rio-2016, não fosse a presença do menino prodígio Isaquias Queiroz, lapidado justamente para brigar por medalhas em três provas – C1 200m, C1 1000m e C2 1000m – na Olimpíada do Rio. A decisão de juntar Isaquias e Erlon na canoa dupla veio apenas em 2015, e logo no primeiro campeonato juntos, o Mundial na Itália, eles foram campeões. A família funcionou melhor que o esperado diante da reviravolta às vésperas da Olimpíada: os rapazes garantem que não foi necessário lavar roupa suja na casa.
? Ronilson aceitou bem porque sabe do potencial de Isaquias. Ele deixou o C2 1000m pelo bem do time, e não foi fácil falar isso para ele, não. Não estou orgulhoso… bem, estou orgulhoso pelo resultado da decisão, mas não por ter falado isso a ele. Foi muito difícil porque o menino é tão boa gente… ? lembra Morlán, pela primeira vez parecendo balançado em suas convicções esportivas:
? Não havia nenhum motivo que não fosse estritamente esportivo para tomar essa decisão. Fiz o melhor para o time, mas logicamente alguém pagou por isso. Não estou devendo nada, mas preciso dar uma oportunidade ao Roni. Se eu continuar à frente da equipe, pelo menos nos dois primeiros anos a dupla no C2 1000m vai ser ele e Erlon, e Isaquias se vira só na canoa individual ? completa o técnico espanhol.
MEDALHAS E FILHOS
Isaquias, que já frisou mais de uma vez em entrevistas não ter conquistado suas três medalhas sozinho, aponta que a importância da equipe não se limita aos treinamentos na água. Alcança também o convívio pessoal:
? Seria muito ruim se o Ronilson tivesse ido embora, porque ele é um cara muito legal. Se ele fosse embora seria a coisa mais chata da casa. O Erlon é um pouco mais sério, e o Ronilson é mais parecido comigo, dá para zoar pra caramba. Se ele tivesse saído não sei se daria para a gente ganhar três medalhas, porque é uma equipe, entendeu? Não tem como mudar ali. É um ajudando o outro, zoando com a cara do outro, fazendo o Jesus ficar com raiva. Eu dou tapa na carequinha do Jesus todo dia, quando ele chegou tinha o cabelo mais preto, comigo ficou mais branco, né? ? diverte-se Isaquias ? É uma bagunça maravilhosa, muita diversão, Sempre tem aquela parte das obrigações, mas quando acaba o treinamento a gente sai cantando, dançando. É como eu sempre falei em entrevista, é uma família.
O clima familiar de Lagoa Santa transparece até na metáfora empregada por Morlán para explicar a importância das três medalhas conquistadas por Isaquias na Olimpíada, ainda que não tenha vindo uma de ouro:
? Sempre falei a eles que as medalhas são como filhos: você quer todas de forma igual. Lógico que todo mundo quer os metais mais valiosos, mas eu não trocaria essas três medalhas que Isaquias leva no peito por dois ouros. Eu não trocaria três por dois.
A Lagoa em clima de Maracanã na torcida por Erlon e Isaquias