Azulejo RIO – Caminhar por ruas do Rio, observando as fachadas de regiões como Santo Cristo e Morro da Conceição, traz à mente o fado na voz de Amália Rodrigues: ?…um São José de azulejos/ mais o sol de primavera/ uma promessa de beijos/ dois braços à minha espera…/ É uma casa portuguesa, com certeza!/ É, com certeza, uma casa portuguesa!?
A tradição lusitana de fixar azulejos com imagens de santos nas fachadas das residências permanece muito viva neste lado do Atlântico. Mesmo que os moradores atuais não sejam portugueses ou descendentes de quem construiu os imóveis, a maioria faz questão de manter o adorno. Isso se dá por preservação da arquitetura original ou até pela colocação de novas peças, que ainda podem ser compradas em lojas do centro da cidade.
? Fiz uma reforma e quiseram tirar o santo, porque estava ?fora de moda?. Mas eu disse para deixar ele aí. Não está incomodando ninguém ? conta a aposentada Selma Martins, diante de sua casa que ostenta uma imagem de São Jorge na Rua Capitão Sena, Santo Cristo.
As figuras se repetem por toda a vizinhança de Selma, obedecendo ao padrão mais comum: quatro azulejos dispostos na diagonal, preenchendo o espaço de uma moldura elevada que parte da própria parede.
? Aqui, diferente é a casa que não tem ? observa a moradora.
Referência em pesquisas sobre azulejaria, a arquiteta e urbanista Dora Alcântara conta que essa história nasceu no final do século XV, durante o reinado de Dom Manuel (que estava no trono de Portugal quando o Brasil foi descoberto). Ele se encantou por peças utilizadas para formar mosaicos na Espanha, e as importou. Começavam, então, a girar as engrenagens desse recurso até que, no século XVII, Portugal já fabricava seus próprios exemplares.
? Eram os chamados azulejos de tapete, pois tinham padrões que se completavam. Começaram a revestir interiores de igrejas e palácios, sendo o primeiro tipo que chegou ao Brasil, quando começou a riqueza do açúcar. Não vieram antes porque eram objetos de luxo ? explica.
TOQUE BARROCO
Já na passagem do século XVII para XVIII, as peças de cerâmica receberam novos ares. Como relata Dora, é neste período que Portugal assumiu o estilo Barroco e, com isso, a produção ganhou imagens religiosas e cenas fidalgas que ocupavam paredes inteiras ? o Barroco procurava não limitar os espaços, mas vazá-los. Mais tarde, com a difusão do estilo Rococó, essas imagens ganharam molduras com rocalha (um tipo de florão).
Até aí, lembra a especialista, os exemplares eram produzidos a partir de uma técnica muito difícil, em que se punha papel sobre o conjunto de azulejos e desenhava-se um esboço de carvão sobre a superfície. Só depois os desenhos eram pintados. No século XIX, a prática foi simplificada, coincidindo com a montagem de fábricas exclusivas de azulejos, cuja consequência foi uma produção maior e mais rápida. Nesse contexto, o Brasil estava perto de ter sua independência e a burguesia comercial começava a crescer em Portugal. Esta classe logo alcançou o poder de usar azulejos em seus imóveis, tirando a exclusividade das igrejas e dos palácios.
Dora afirma que a utilização dos azulejos com imagens de santos nas residências lusitanas (que, em boa parte, correspondia à parte de cima do comércio da família) começou a ser observada entre 1750 e 1800.
? Esses santos podiam estar no interior de uma casa mas, em geral, ficavam na fachada para proteger o imóvel. Em 1755, um forte terremoto arruinou Lisboa e, a partir do episódio, a busca por essa proteção aumentou muito. Tanto que eram recorrentes as imagens de São Francisco de Borja, protetor contra terremotos, São Marçal, contra incêndios, e Nossa Senhora, protetora da família ? descreve a arquiteta.
Os primeiros exemplares eram muito elaborados, com medalhões e rococós. Com os anos, começaram a ganhar versões simplificadas e, pouco depois, aportaram no Brasil.
? É claro que o gosto pelos santos foi adaptado às devoções locais. Era uma prática portuguesa na origem, mas logo tivemos várias fábricas no país. O padrão de quatro azulejos na diagonal era o mais simples de todos, fazendo muito sucesso entre as camadas populares. Buscava-se algo barato, com propósito mais devocional do que decorativo, enquanto entre os mais ricos a lógica era inversa ? acrescenta Dora.
Pesquisadora e professora de história da arte e da arquitetura da Universidade Estácio de Sá, Camila Belarmino observa como a utilização desses azulejos no Brasil sofreu variações ao longo do tempo.
? Até o século XVIII, tivemos farto uso de painéis na Bahia e em Pernambuco, polos econômicos do Brasil colonial, mas restritos à arquitetura oficial e religiosa. No século XIX, observamos seu uso mais popular, isto é, na arquitetura civil. No início do século XX (até 1920), por conta da intensa imigração portuguesa e espanhola, houve um uso mais contemporâneo, com painéis menores e quadros em forma de losango em frontões das residências. No Rio, é possível encontrar muitos destes azulejos no subúrbio e em regiões da Zona Oeste, como Jacarepaguá, onde se estabeleceram muitos imigrantes ibéricos ? descreve.
SANTO DO PAU OCO
Já o restaurador mineiro Wagner Matias lembra que, em muitos casos, as imagens tinham a função de simbolizar status e ostentação. Os mais abastados tinham seus santos favoritos.
? Em Ouro Preto, por exemplo, havia muita influência das irmandades. Nossa Senhora do Carmo e São Francisco eram ligados aos mais nobres. Enquanto isso, Santa Efigênia e Padre Faria faziam as vezes entre os negros e mais pobres ? ilustra.
Mesmo que a distância entre os donos originais dos imóveis e seus atuais moradores seja grande, o respeito pelas imagens continua forte. A casa do militar Adão Natal, de 56 anos, no Morro da Conceição, guarda uma dessas histórias. O imóvel adquirido por ele na década de 1980 tinha dois andares. No segundo, havia uma varanda, em cujo interior estava a imagem de Nossa Senhora de Fátima em azulejos.
Ao longo dos anos, a família foi crescendo e Adão fez várias reformas no imóvel, que hoje já está com quatro andares. A antiga varanda foi fechada e a imagem da santa, removida e fixada do lado de fora.
? Santo a gente sempre tem que acreditar, né? E acho bonito também ? justifica ele sobre a única imagem religiosa presente em toda a residência.
O respeito é reforçado até pela sogra de Natal, Solange Santos, cuja única crença ?é Deus?.
? Para mim, o que garante a proteção é a fé. Se a pessoa dedica essa fé à santa, ótimo ? diz ela, do alto da janela.
SOBROU A IMPRESSORA
Nas ruas do Centro, essa tradição continua viva no mercado de azulejos. Mas já é difícil encontrar os exemplares tradicionais, feitos a mão. Um dos maiores fornecedores da produção artesanal carioca, António Igrejas, morreu há alguns anos sem, aparentemente, deixar herdeiros de seu ofício, segundo comerciantes do ramo. Seus últimos conjuntos formados por quatro azulejos em estoque são vendidos por até R$ 300.
? Cheguei a ir à casa dele buscar algumas peças. Quando comentava que um cliente havia reclamado de uma peça não estar igual à outra, ele respondia: ?diga que isso é um trabalho artístico? ? recorda-se Carlos Alberto Oliveira, sócio da loja Pontal Rio, na Rua General Caldwell. ? Desde que ele deixou de produzir as imagens, até apareceram outros oferecendo. Mas não eram bonitos.
Sem o Seu Igrejas, como ele era conhecido entre os comerciantes, o jeito foi apelar para recursos mais modernos. Na loja de Carlos Alberto, por exemplo, uma imagem da Santa Ceia em azulejos divide espaço no mostruário com a reprodução de uma tela de Romero Britto. Tudo feito por um recurso de impressão aplicada sobre a cerâmica.
? Os santos mais procurados são Nossa Senhora, São Jorge e Nossa Senhora de Fátima ? enumera ele, mostrando como a tradição se mantém viva.
O serviço de impressão também está disponível na loja Baú Azulejos Antigos, na mesma rua. Um conjunto de quatro peças sai por R$ 180. Segundo a sócia Natália Espíndula, a demanda é frequente e, além do público católico, também há muita procura por São Jorge pelos umbandistas.
? A maior parte é de idosos ou pessoas mais novas, que querem repor peças quebradas. Acho que é uma tradição que vai durar para sempre. Vejo como algo que materializa a fé ? conclui Natália.