RIO – No dia 2 de novembro de 1972, Tommaso Buscetta fez uma viagem diferente. Em um avião militar, cercado por homens do Departamento de Ordem Política e Social (Dops), viu os policiais abrirem a porta da aeronave e ameaçarem lançar sua esposa, Maria Cristina de Almeida Guimarães, para a morte. Só então o italiano admitiu que não era Tomás Felice, sua identidade falsa, mas o mafioso Tommaso Buscetta.
Essa cena abre ?Cosa Nostra no Brasil?, livro do jornalista gaúcho Leandro Demori que conta a história de Buscetta e das ramificações da máfia siciliana no país. Após ser preso e torturado pelos mesmos agentes que perseguiam militantes políticos durante a ditadura militar, o mafioso foi extraditado para a Itália. Após sair da prisão, no início dos anos 1980, voltaria ao Brasil fugindo da guerra interna da Cosa Nostra, que nos anos seguintes vitimaria seus aliados mais próximos e alguns de seus filhos. Preso e extraditado novamente, após reorganizar seus negócios ilícitos, ele tomou a decisão mais desprezível para a máfia: tornou-se um delator. Suas colaborações com a Justiça italiana e americana implodiram a Cosa Nostra. Em troca, ele ganhou uma nova identidade e proteção.
Se o fim da história de Buscetta é conhecido, Demori revela que a vida do mafioso no Brasil ? ele morou no país em três períodos diferentes ? foi bem menos idílica do que se imaginava na Itália, onde séries de TV o retrataram como um bon vivant de camisa florida na praia. Sua pesquisa começou em 2008, quando se mudou para a Itália e fez um curso de especialização com foco em sistemas mafiosos.
Ao retornar ao Brasil, em 2011, com o conhecimento recém-adquirido sobre a história e os funcionamentos das máfias italianas, ele pesquisou os arquivos da ditadura militar recém-abertos. Os documentos guardados no Rio de Janeiro e em São Paulo, além do Arquivo Nacional, trouxeram muitas novidades.
? Ao escrever sobre as máfias, percebi que não havia nenhuma biografia de Buscetta, só livros que são de entrevistas. Nos arquivos, tem muita coisa sobre ele, depoimentos das pessoas com quem ele se relacionava, inclusive dos criminosos que o colocavam no centro do tráfico de heroína ? afirma.
Em ?Cosa Nostra no Brasil?, a trajetória do mafioso se confunde com a da própria Cosa Nostra. Buscetta não tinha relações de berço com a máfia, o que sempre travou sua ascensão. Envolveu-se com o contrabando de cigarros e, quando a heroína se tornou o grande negócio do crime, foi fundamental para abrir uma rota para os Estados Unidos através do Canadá. Nos EUA, Buscetta foi próximo da família Gambino, um dos principais clãs mafiosos de Nova York.
A primeira passagem de Buscetta pelo Brasil foi no início da década de 1950, quando ficou pouco mais de um ano em São Paulo com a família. Ele voltou em 1971, após sair da prisão nos EUA depois de pagar fiança. O motivo pelo qual não foi extraditado para a Itália, onde era acusado de vários crimes, permanece desconhecido. Uma das hipóteses, diz Demori, é que ele tenha se tornado informante do governo dos EUA sobre a atividades de grupos de esquerda na América Latina, mas não há documentos que comprovem isso.
Foi nessa segunda passagem pelo país que Buscetta se apaixonou por Maria Cristina, montou uma operação de transporte de heroína para os EUA em parceria com franceses e caiu nas garras do delegado Sérgio Paranhos Fleury, do Dops paulista, em 1972. Para Demori, Fleury atirou no que viu e acertou no que não viu. O mafioso tentou comprar uma fazenda no Mato Grosso do ex-presidente João Goulart, exilado no Uruguai, para transformar o local em entreposto do tráfico. O negócio não deu certo, mas Buscetta foi fotografado numa festa de aniversário de Jango. Fleury achou que o italiano elaborava um plano para a volta do ex-presidente ao poder e atacou o mafioso e seu grupo.
? Quando o Fleury entendeu quem era Buscetta, viu que o preso tinha valor. Ele foi uma vítima acidental, não estava sendo investigado por tráfico ? conta.
Na história da ascensão de Buscetta (que foi preso mais uma vez no Brasil em 1983 e morreu em 2000) e de várias lideranças da máfia, fica claro que a roda do crime não para de girar. Onde um cai, outro sobe:
? O livro é um manifesto velado contra a proibição das drogas. O que temos é a exportação da violência. No primeiro mundo, a droga é consumida, o lucro é alto e esse dinheiro entra no PIB dos países. Enquanto isso, a violência é exportada para cá.