RIO – Celso gostava de desenhar casas e cidades quando criança. Amália assistia, desde os 2 anos, às aulas de balé da irmã. Leandro adorava se meter entre os atendimentos médicos do pai. Celso virou arquiteto, Amália abriu uma escola de dança com a irmã e Leandro se especializou em cirurgia plástica. Em comum, os três carregam uma certeza imutável de que seguiram os rumos certos na profissão. Não é para menos. Segundo especialistas, talentos desenvolvidos na infância podem dizer muito sobre a vocação de cada pessoa.
? Desde muito cedo fui munido de caneta e lápis pelos meus pais. E isso acabou se transformando numa maneira muito forte de me expressar. Quando tinha uns 8 anos, chegava a pedir desenhos feitos nas férias anteriores para melhorá-los ? recorda-se o arquiteto e urbanista Celso Rayol, um dos sócios do escritório Cité Arquitetura.
Ele adorava reproduzir cidades e elementos relacionados ao universo da casa, entre objetos e pessoas que habitariam esses espaços. Aos 12 anos, Rayol começou a esculpir e pintar suas formas sobre sabonetes, enquanto suas habilidades eram aperfeiçoadas em aulas e cursos, até tudo isso desembocar na faculdade de arquitetura. Em toda a trajetória profissional, o desenho foi o diferencial, abrindo portas e facilitando a expressão de suas ideias.
Outras ? Nos momentos mais burocráticos, ele me servia como aporte para a arquitetura, tornando tudo mais prático. Numa reunião, por exemplo, posso ilustrar rapidamente minhas ideias ? diz ele, que enxerga nas histórias de sua infância o embrião da carreira. ? Percebo que foi tudo muito acertado. Não passei pela dificuldade que vi vários amigos passando na hora de escolher a profissão.
De acordo com a coordenadora do Programa de Orientação Profissional da Universidade Federal de Minas Gerais, Delba Barros, durante a infância já é possível identificar talentos que diferenciam o indivíduo da massa.
? São aquelas atividades que fazemos com facilidade, interesse e prazer ? enumera.
E as pessoas que carregam essa bagagem na profissão, em geral, são mais satisfeitas com seus ofícios, segundo ela.
? Em muitas circunstâncias, acabam se destacando, por atuar dentro de uma combinação muito satisfatória: talento, interesse e competência desenvolvida na qualificação ? descreve.
BUSCA PELO AUTOCONHECIMENTO
Mas identificar essas aptidões é um trabalho de dedicação à autorreflexão.
? A grande sacada é combinar os talentos com o exercício ocupacional. É preciso refletir sobre quais deles desejamos que façam parte da vida ocupacional. Se estiver difícil chegar a uma resposta, podemos pedir ajuda a um profissional ou a alguém que nos conheça ? recomenda a especialista, acrescentando também ser importante o diálogo com pessoas que conheçam aquela realidade profissional.
No caso do cirurgião plástico Leandro Ventura, tal realidade saltava aos olhos cotidianamente. Seu pai é clínico e costumava resolver pequenas emergências que surgiam no condomínio.
? Às vezes, chegava alguém com o dedo ensanguentado e ajudava meu pai segurando uma luminária, enquanto ele fazia o curativo ? recorda-se Leandro, que não se esquece também dos calafrios que sentia ao observar essas cenas.
Mas o que ele gostava mesmo era de ver a gratidão das pessoas, cada vez que recebiam os cuidados do pai.
? Era isso que me atraía. Ao mesmo tempo em que não me sentia bem diante de algumas situações, tinha uma curiosidade e via a profissão como uma vocação. Nunca me senti inseguro quanto à minha carreira ? conta ele, que lutou para superar o nervosismo diante de sangue e ferimentos até o início da carreira.
Com apenas 2 anos, a professora de dança Amália Cigarro já tinha lugar cativo nas aulas de balé da irmã, Natália, na época com 7. Ela ainda não havia alcançado idade para participar, mas gostava de ficar quietinha num canto, observando. Tão logo conseguiu ensaiar os primeiros passos, também foi matriculada.
A parceria, então, jamais se desfez. Juntas, ela e a irmã continuaram a fazer aulas e cursos, e participaram de festivais de dança por todo o Brasil.
? A gente passava férias em Iguaba e fazia um teatro na garagem para produzir musicais com as amigas. Montávamos uma plateia com cadeiras e chamávamos toda a vizinhança ? recorda-se Amália.
Com a maioridade, a irmã mais velha chegou a ter uma carreira como comissária de bordo, mas o amor pelos palcos falou mais alto. Amália se formou em Educação Física, e elas abriram uma escola de dança, cujo nome leva as iniciais das duas: N.A.C. Dance.
? Enfrentamos muitas dificuldades, já que no Brasil a arte muitas vezes é tratada como artigo de luxo. Mas nunca tive dúvida de que fizemos a escolha certa ? reflete Amália. ? Trabalhar com algo assim não tem preço. É uma obrigação, mas, antes disso, é a realização de um sonho a cada dia.
Para o psicólogo clínico Alexandre Trzan Ávila, que é membro do Conselho Regional de Psicologia do Rio de Janeiro, a observação sobre os gostos e habilidades na infância deve ser feita de maneira criteriosa, para que coisas diferentes não se misturem.
? Uma criança pode ter habilidade para matemática e música, e a família incentivar apenas a primeira. Isso será prejudicial, se entrar em confronto com os desejos dela ? comenta ele. ? A pessoa tem que buscar aquilo que faz sentido para ela.
NUNCA É TERDE DEMAIS
Por outro lado, como ele destaca, também é perigoso pensar que a pessoa tem que se prender àquilo que já sabe fazer bem.
? Isso é muito aprisionador. Uma pessoa pode ter habilidade em tecnologia e querer ser surfista ? provoca.
E, como acrescenta a psicóloga Delba Barros, nunca é tarde para se aprender algo novo:
? Talento não aparece apenas na infância. As pessoas o desenvolvem ao longo de toda a vida.