BRASÍLIA E RIO- A polêmica sobre tratamento diferenciado a traficantes que são réus primários impediu ontem que o Supremo Tribunal Federal (STF) definisse maioria de votos para considerar hediondo todo e qualquer crime envolvendo o comércio ilegal de drogas. Na sessão, seis dos 11 ministros foram a favor da tese de que tráfico é hediondo, sem direito a benefícios de pena aos condenados. Mas houve pedido de vista de Edson Fachin, ministro que tinha votado no primeiro grupo, adiando novamente a decisão para uma data indeterminada. cannabis
O Supremo discute se o crime de tráfico de drogas deve ser considerado hediondo em todas as situações ? mesmo quando o acusado tem bons antecedentes e não integra organização criminosa. Se o crime, quando praticado nesse tipo de situação, não for enquadrado como hediondo, o condenado poderá ter tratamento diferenciado, como, por exemplo, começar a cumprir a pena no regime semiaberto, em que o preso pode sair durante o dia para trabalhar e voltar à noite para a cadeia.
O assunto começou a ser discutido no ano passado a partir de um habeas corpus e ontem foi retomado. Além dos seis ministros que votaram pela tese de crime hediondo, três afirmaram que, em casos especiais, o crime pode não ser considerado hediondo. Além de Fachin, defenderam a classificação de hediondo para todo tipo de tráfico os ministros Teori Zavascki, Rosa Weber, Luiz Fux, Marco Aurélio Mello e Dias Toffoli. Os dois últimos votaram na sessão de ontem, antes do pedido de vista. Para Toffoli, se o crime deixar de ser tratado como hediondo, mais pessoas arriscarão a sorte no tráfico.
? Se afastar hediondez, organizações criminosas vão atrair pessoas com bons antecedentes para correr o risco de se aventurar no ilícito ? opinou.
Marco Aurélio ressaltou que, como juiz, ele precisa aplicar a lei literalmente, sem conceder nenhum tipo de perdão a criminosos.
? Recuso-me a entender que um crime pode ser privilegiado ? protestou.
Já tinham defendido a concessão do tratamento diferenciado a traficantes de bons antecedentes os ministros Luís Roberto Barroso e Cármen Lúcia, que é a relatora do caso. Segundo a ministra, um réu primário e com bons antecedentes não pode receber pena grave. Na sessão de ontem, ela lembrou que as prisões já estão superlotadas. A decisão de conceder tratamento mais brando a condenados em situação especial poderia colaborar com a solução para esse problema.
? No caso de tráfico privilegiado, tais pessoas devem ter tratamento distinto dos que comandam organização ? afirmou a ministra ano passado.
Barroso concordou com a relatora. No voto, ele considerou a exacerbação da pena uma arma pouco eficaz na guerra contra as drogas e ressaltou o problema de superlotação nos presídios, que pode ser evitado com penas mais brandas a criminosos menos perigosos:
? O crime de tráfico privilegiado comporta uma pena de bem menos que quatro anos. Se aplicadas todas as diminuidoras de pena, ela cai para um ano e oito meses. E se o ordenamento jurídico apena a conduta com um ano e oito meses de prisão, evidentemente não a está tratando como uma conduta que possa receber o tratamento de crime hediondo.
O julgamento que ensejou toda a discussão é de dois traficantes presos no Mato Grosso do Sul transportando 772 quilos de maconha em uma caminhonete. Eles foram condenados a sete anos e um mês de reclusão pelo crime de tráfico, em regime inicialmente fechado. Apesar da grande quantidade de droga, o juiz de primeira instância não considerou o crime hediondo. O Ministério Público recorreu, mas o Tribunal de Justiça do Mato Grosso do Sul manteve a decisão do juiz de primeira instância. Em novo recurso, dessa vez ao Superior Tribunal de Justiça (STJ), houve mudança no entendimento e os dois foram enquadrados na lei de crimes hediondos. A Defensoria Pública recorreu ao STF em nome dos dois condenados.
RESULTADO TERÁ EFEITO CASCATA
A decisão do STF valerá para casos semelhantes analisados por juízes de todo o país, mas os ministros ponderaram que o caso não é exatamente emblemático de tráfico privilegiado, por conta da grande quantidade de droga apreendida. Uma solução seria considerar hediondo o crime específico do habeas corpus. Mas fixar uma tese de repercussão geral beneficiando o tráfico privilegiado para outros casos em que a situação fique mais clara.
A jurisprudência do STF indica que o tráfico de drogas é um crime hediondo. A nova tese pode dar a um grupo de traficantes tratamento mais brando. Pela Lei de Drogas, a pena por tráfico deve reduzida de um sexto a dois terços se for cometido por réu primário, de bons antecedentes, que não se dedique a atividades criminosas, nem integre organização criminosa. Mas a lei não fala se o crime, praticado nessas condições, é ou não hediondo.
Caso a tendência do STF de classificar o chamado ?tráfico privilegiado? como crime hediondo se concretize, a decisão da Corte significará ?uma tragédia? na opinião de especialistas em políticas sobre drogas. Cientista social e diretora do Instituto Igarapé, Ilona Szabó argumenta que a postura do STF é dissonante e vai contra as evidências científicas e jurídicas sobre o tema. Ilona alerta para uma implosão do sistema carcerário brasileiro como consequência de uma nova jurisprudência a respeito do assunto.
? O Supremo vai totalmente na contramão de uma legislação aprovada no Congresso. A lei já diferencia o pequeno do grande traficante. Somos a quarta maior população carcerária do mundo, isso vai ter um impacto monumental no sistema carcerário falido que temos ? critica. ? Estamos defendendo proporcionalidade no cumprimento da lei. A nossa surpresa é que esse princípio tão presente no julgamento do Supremo esteja sendo abandonado por conta de um julgamento moral.
Para Luciana Boiteux, professora de Direito Penal e Criminologia da UFRJ, se decidir da maneira como vem sinalizando, o Supremo perderá a oportunidade de fazer uma discussão ?racional? sobre um ponto importante:
? O Supremo poderia fazer um julgamento considerando não só o impacto no sistema penitenciário, mas também levando em conta a promoção de uma discussão racional. É um crime completamente diferente do que a própria Constituição classifica como hediondo. Não faz sentido comparar um crime que hoje tem pena mínima de um ano e oito meses com um crime hediondo.