Tudo é mato até que se prove o contrário ? ou que é gostoso. Primeiro, foram as alfaces, a couve, a rúcula, enfim, tudo o que se encontra nas feiras. Agora, as plantas alimentícias não convencionais, as PANCs, fazem a cabeça dos chefs, levando espécies como beldroega e sálvia-peixinho para os menus.
Andar pelos pastos e florestas olhando o que brota faz parte da rotina do chef Isaías Neries, que comanda o Parador Lumiar. O interesse pelo que não é vendido na feira vem desde a infância passada em Santo Amaro da Purificação, na Bahia, quando acompanhava a mãe que era a rezadeira da cidade. Ervas e folhas ditas estranhas faziam parte das receitas dela, tanto para cozinhar quanto para curar. Anos depois e já chef, foi natural para Isaías levar folhinhas de vique para um purê de cará, preparar o coração da bananeira como se fosse uma carne-seca ou fazer a massa do ravióli usando a folha do jambu-do-mato.
? Começo experimentando e perguntando para as pessoas. Depois, pesquiso em livros, tentando identificar as folhas, para saber se posso utilizá-las ? conta Isaías, que já passou a cultivar plantas que eram vistas como invasoras. ? Com a serralha, no ano passado, foi assim. Os meninos que cuidam da horta arrancavam e jogavam fora, diziam que não servia para nada. Mas resolvi testar e comecei a usar no preparo de uma massa. Hoje, cultivamos.
O chef Ivan Ralston já pesquisava as PANCs antes de abrir o Tuju, na Vila Madalena, em São Paulo. Frequentava os encontros do Centro de Cultura Culinária Câmara Cascudo e acabou se encantando tanto pelo que descobria que elas viraram as protagonistas do restaurante.
? Plantamos mais de 350 variedades de PANCs. Temos uma estufa, canteiros e carrinhos para cultivá-las. Fora a nossa produção, contamos ainda com mais de 20 fornecedores. E sempre que posso, eu saio pela cidade à procura delas ? comenta Ivan, que lista beldroega, pelo sabor; ora-pró-nobis, pela textura carnuda; e serralha, pelo amargor, como as preferidas.
TOUR EM BUSCA DE PLANTAS
Uma das referências de Ivan é Neide Rigo, ?uma forager que entende muito do assunto?, elogia. Há anos, ela experimenta, descobre e cataloga os matinhos que encontra e divulga no blog Come-se. A pesquisadora comanda o passeio Pancnacity, em que caminha com um grupo colhendo as plantas desconhecidas e monta um almoço.
? As PANCs não são um grupo de plantas coeso e homogêneo. Há espécies nativas, exóticas, cultivadas, espontâneas. Há folhas, frutos, vagens e grãos. São plantas que não encontramos facilmente nos mercados, mas que em determinados lugares podem ser convencionais ? explica Neide. ? A finalidade do tour não é só colher, mas também reconhecer. No momento, estou adorando as flores da Moringa Oleífera, as vagens imaturas do nabo forrageiro e as verdes do feijão-espada.
Inês Braconnot acaba de abrir o Ró, restaurante de comida raw sofisticada no Jardim Botânico. Lá, as PANCs serão frequentes. Pesquisadora do tema há dois anos, ela conta que essas plantinhas não são difíceis de encontrar, mas que as pessoas geralmente não sabem que elas são comestíveis.
? Muitas são consideradas matos espontâneos, ou seja, plantas que crescem nos nossos quintais, que temos a mania de considerar daninhas. Também são PANCs as partes dos alimentos que geralmente dispensamos. Como nas bananas, das quais não utilizamos os corações ou umbigo. Eu gostaria de ter só estas plantas no restaurante ? comenta a chef de comida crua, que, nesta semana, recebeu em seu restaurante coentro-da-Mata-Atlântica, folha de acerola, jambu, bilimbi, flor-de-ipê, vinagreira, curry, peixinho e ora-pro-nóbis.
O chef Rafa Costa e Silva, do Lasai, conta que até nos drinques já colocou algumas. Entre as preferidas estão bertalha, beldroega, hibisco e salicórnia. Com um menu sempre em movimento, a chance de ir ao restaurante e se deparar com um nome diferentão no cardápio é altíssima. No Zazá Bistrô, o novo chef Rodrigo Tristão colocou uma tortinha de PANCs no cardápio. Nela, ele do almeirão ao caruru. No Naga, tem a salada Nagayama, que usa o shissô, conhecido como manjericão japonês, em pratos como o carpaccio de barriga de salmão que vem sobre as folhinhas.
De volta ao Brasil depois de uma temporada no Noma, em Copenhague, o chef Carlos Cordeiro está comandando o Insólito Butique Hotel, em Búzios. Ele resolveu reproduzir aqui o que aprendeu com o chef René Redzepi: valorizar o que a natureza oferece, levando em conta a sazonalidade. Nesse caminho, pretende colocar mais de cem tipos de algas comestíveis no menu, além de plantas que crescem próximas do mar. Além disso, Carlos montou suas hortas no hotel, uma convencional e outra dedicada às PANCs. Em suas receitas, calêndula, ixora, alface-do-mar, capuchinha e bredo-da-praia surpreendem.
? Escolhi plantar e caçar espécies da nossa flora local de Búzios ao assumir a cozinha do Insólito. Desde que cheguei aqui, em março, costumo colher várias delas por onde ando. E também cultivo na nossa horta, que já tem quiabo-roxo, couve-de-bruxelas, cravina rendada, borragem, beterraba Golden, almeirão-verde, mostarda-roxa, couve-toscana, cenoura red, físalis, girassol, calêndula, maxixe-rosa, nirá, lavanda e amor-perfeito. Estamos fechando uma parceria com um biólogo para levar os mais de cem tipos diferentes de algas comestíveis que existem no mar de Búzios para a cozinha ? conta Carlos, que acredita que usar as PANCs é o maior dever dos chefs. ? Há 80 anos, existiam mais de 490 diferentes tipos de alface pelo mundo. Hoje temos apenas 36. O cenário atual é alarmante. É nossa obrigação trazer novas espécies a fim de diversificar e fortalecer o nosso meio ambiente e o produtor.
SEMENTES CRIOULAS
Teresa Corção, d?O Navegador, aprendeu sobre as não convencionais a partir da cozinha familiar. Suas não convencionais saem tanto de lavouras plantadas com sementes crioulas como de brotinhos que pipocam naturalmente.
? São plantas que geram um menor impacto no meio ambiente. Não é à toa que, na Dinamarca, os chefs usam há muito tempo ? diz ela.
A chef Ana Ribeiro é famosa por sua cozinha cheia de matinhos. Foi uma das primeiras a colocar o caruru no pão ou levar a beldroega para quiches e patês. No próximo dia 25, aliás, ela dará um curso sobre as PANCs em São Paulo, no Congresso de Empreendedores de Gastronomia Saudável.
? Eu uso as PANCs há muito tempo. Nós, mineiros, temos o hábito de usá-las no dia a dia. São plantas que nascem espontaneamente em quintais, hortas, terrenos baldios, cantinhos de calçadas, frestas de paredes ? conta Ana, que pede ajuda a biólogos, mateiros, raizeiros, benzedeiras e pessoas com sabedoria popular de camponês para saber se um matinho pode ou não ir para a comida.
Os passeios de Ana em busca das não convencionais é em boa parte por espaços urbanos.
? Eu as encontro em vários lugares, das improváveis Avenida Presidente Vargas e Central do Brasil até o pé de um poste no condomínio Península, na Barra da Tijuca ? lista ela, que tem como preferidos beldroega, ora-pro-nóbis, taioba, malva, begônia, serralha, pincel de estudante e dente-de-leão.
Lydia Gonzalez, do Bar d?Hotel, é quase uma discípula de Ana Ribeiro. Ela conta que foi Ana quem a mostrou o quanto é vasto o mundo PANC. Hoje, ela é apaixonada pelo lírio-do-brejo, e ainda usa trevo-roxo, cariri, taioba e tiririca na cozinha.
? O lírio-do-brejo é uma raiz muito perfumada, parece um gengibre. Adoro a azedinha pela acidez. Ela me lembra o sabor do limão ? conta Lydia, que, para surpreender os convidados, já fez uma ceia de Natal só com PANCs.
Helena Rizzo, do Maní, em São Paulo, começou a se interessar por PANCs quando conheceu o biólogo Valdely Ferreira Kinupp, autor, junto com Harri Lorenzi, do livro ?Plantas Alimentícias Não Convencionais no Brasil? (Ed. Plantarum), lançado em 2014, em que a dupla cataloga 351 espécies ? sim, há PANCs profundas, aquelas que vão bem além da ora-pro-nóbis e da taioba. Resultado de uma pesquisa que durou mais de dez anos, o livro, fica a dica, é citado pelos chefs como a publicação ?tem-que-ter? para quem busca saber mais sobre o assunto.
SALADA COM VITÓRIA-RÉGIA
? Soube das PANCs em 2013, quando fui visitar o Jardim Botânico Plantarum, em Nova Odessa, interior de São Paulo, e o Valditely estava lá com o Harri. A gente fez um almoço com o que colhemos no jardim. Lembro de ter preparado, ali na hora, um prato com vitória-régia. Foi assim que comecei a pesquisar. Aos poucos, descobri outras plantas e passei a incorporá-las à cozinha do Maní ? lembra Helena.
Além de encontrar fornecedores de algumas espécies, Helena esbarra com outros de maneira natural: um passeio na praia, do qual voltou com a bolsa cheia de lírio-do-brejo, ou uma volta pelo jardim de casa, onde crescem capuchinhas.
? Usar estes ingredientes é bacana por vários aspectos. Primeiro, pelo gustativo. A maioria dessas plantas têm gostos incríveis, variam bastante o paladar. E também pelo fator nutritivo. Elas crescem em abundância. Só não são mais usadas por desconhecimento. Sem falar que, ao usá-las, contribuímos para um tipo de agricultura menos nociva ? garante ela, que tem uma paixão especial pela taioba.
Um viva para a diversidade. Na cozinha e fora dela.
(Por Lívia Breves)