?Desculpe, mas a bateria do meu celular está no fim, e a ligação pode cair a qualquer momento?, advertiu o pianista norueguês Leif Ove Andsnes, de 46 anos, logo no início da entrevista por telefone, semanas antes do recital que fará hoje, às 20h, no Teatro Municipal do Rio, pela série O GLOBO/Dell?Arte. Muito requisitado e elogiado por onde passa (?soberbo?, ?brilhante?, ?apolíneo?, ?excelente? e ?detalhista? são alguns dos adjetivos que aparecem ligados ao seu nome numa pesquisa ao site do ?New York Times?), ele procura fazer bom uso do seu tempo ? chegou ao Rio no sábado à noite e pediu que lhe conseguissem um piano para ensaiar ontem durante todo o dia e também hoje à tarde ?, então é provável que sua bateria não resista a entrevistas desinteressantes. Ele começa o papo falando de seu país e relacionando música com… indústria petrolífera.
? Os países nórdicos têm diferentes tradições. A da Finlândia talvez seja a mais longa. Meu país, a Noruega, teve um desenvolvimento enorme de sua cena musical nos últimos 20 anos. Por quê? Porque o governo foi sábio o suficiente para investir nas artes uma parte do dinheiro oriundo do petróleo encontrado no Mar do Norte. É um país pequeno, então também tem sido importante atrair talentos de nações próximas para trabalhar com artistas noruegueses, como, por exemplo, o regente (letão) Mariss Jansons, que foi titular da Filarmônica de Oslo, e o meu próprio professor de piano, que veio de Praga ? diz o pianista, que há muito tempo deixou de participar de competições como candidato para integrar o júri delas. ? Não é algo que eu faço com frequência, mas já estive na banca de algumas competições e devo dizer que, depois de quatro ou cinco horas ouvindo piano, torna-se bastante difícil diferenciar um concorrente bom de outro muito bom. É claro que um excepcional é mais fácil de identificar. Mas o ouvido fica cansado, e os erros de jurados acontecem.
Espera de 40 anos para gravar beethoven
Consagrado principalmente por suas interpretações do repertório do Romantismo, Andsnes tomou certos cuidados ao construir sua carreira. Um deles foi esperar o momento certo para gravar um dos compositores mais queridos de qualquer pianista clássico.
? Eu sempre toquei Beethoven, mas não me senti pronto a gravar a sua música até estar na casa dos 40 anos. A forma como me relaciono emocionalmente com a música dele mudou muito com a idade. Quando eu era estudante, me sentia muito atraído pela sua energia, e tocava de forma bastante rígida. Agora, quando penso em Beethoven, a palavra-chave é liberdade. Não estou me referindo simplesmente a andamentos ou a rubato (liberdades rítmicas numa frase musical), mas também a colorido, a diversidade de expressão, ou seja, à riqueza de coisas que posso dizer com tão pouco material, muitas vezes ? explica o músico, que tocará no Rio a sonata nº 18 do alemão. ? Levei bastante tempo, por exemplo, para compreender os movimentos lentos de Beethoven, que, às vezes, são quase como preces; só que ele prega a uma plateia vasta. É diferente da música intimista de Chopin ou Schumann, que soa como uma confissão entre duas pessoas. Schumann tem belos momentos que são como se ele sussurrasse: ?eu te amo?. Com Beethoven, é uma mensagem maior. É sobre humanidade.
Recentemente, o norueguês registrou todos os cinco concertos para piano e orquestra de Beethoven. Ele conta que, desde a juventude, sonhava gravá-los, bem como os quatro de Rachmaninov (o que já fez). No entanto, ele garante não ter interesse em fazer o mesmo com as 32 sonatas de Beethoven, e diz estar feliz tendo metade delas em seu repertório.
? O universo das sonatas é grande demais. É difícil conseguir tempo para digerir bem todas elas. Então, eu prefiro escolher algumas e me aprofundar nelas, a ponto de dizer que eu domino cada nota ? gaba-se ele, que regeu, do seu piano, a Mahler Chamber Orchestra nos concertos de Beethoven. ? Eu gosto de reger sentado ao piano, mas não me vejo trocando de carreira e me aventurando em sinfonias. Eu sei 200 vezes mais sobre piano do que sobre orquestra. Por que diabos eu viraria regente? Talvez se eu tocasse viola, que não tem tanto repertório…
No recital de hoje, que marca a volta de Andsnes ao Rio após sua estreia na cidade em 2001, também há obras de Debussy, Chopin e Sibelius.
? A música para piano de (Jean) Sibelius (grande nome da Finlândia, morto em 1957) é muito negligenciada, mesmo nos países nórdicos. É verdade que, dentro de toda a sua produção, é o que há de mais desigual. Então, eu escolhi algumas das peças que acho maravilhosas e as estou advogando. Vou gravar uma seleção delas no fim deste ano. Tenho a impressão de que Sibelius tinha o som da orquestra em mente quando escrevia para o piano ? analisa.
Uma característica de Andsnes é prestar atenção ao que dizem outros pianistas. Assim, ele cita o húngaro Géza Anda ao responder uma pergunta sobre como explorar elementos musicais enterrados nas partituras. Citando uma reflexão do colega, o norueguês pondera que os músicos mais velhos tendem a tocar mais devagar não por falta de agilidade, mas porque querem ouvir todos os detalhes da partitura. E recorre ao americano Jorge Bolet ao se dirigir a jovens que lhe pedem conselhos.
? Bolet dizia, ao fim de suas masterclasses: ?eu lhes desejo uma carreira longa?. Não uma carreira brilhante e cheia de fama, mas longa. Para se conseguir isso, é preciso tocar com sinceridade e seguir seus instintos. Quem foca no sucesso, e não na música, está no caminho errado, porque soará artificial ? conclui Andsnes, ao fim de uma conversa de meia hora em que a bateria de seu celular não falhou uma só vez.
?O governo (norueguês) foi sábio o suficiente para investir nas artes uma parte do dinheiro oriundo do petróleo?