ESTOCOLMO, SUÉCIA – A luz cutucava meu rosto através de uma pequena fresta na cortina. ?Mas acabei de dormir….?, pensei. Chequei o relógio confusa. Eram 3h45m e amanhecia em Estocolmo. A cidade, que recebe só seis horas de sol no inverno e que tem o solo coberto de neve de dezembro a abril, vê no verão o vigor de quem não tem tempo a perder.
Nas 19 horas de luz dessa estação, museus, parques, bares e restaurantes recebem os suecos de short e sandálias de dedo, aproveitando os ?escaldantes? 20 graus no meio do dia, que podem chegar a 13 sem aviso prévio. Os desafios agrícolas que o frio e a escuridão impuseram à Suécia ajudaram a formar os pilares da gastronomia nórdica que hoje encanta o mundo. Dentro daquele povo há, sem dúvida, o ?Verão invencível?, de Camus. O segredo é buscar o calor que lhes falta na forma de fumaça, gordura e sal.
A civilidade sueca é acachapante, e começa pelo Allemansrätten: o ?direito de todos os homens? de vagar pelos campos e bosques catando cogumelos, flores, pequenos frutos e plantas, independentemente de o fazerem em propriedades privadas. A lei, que não se aplica a jardins cultivados ou áreas residenciais, tem como princípio básico a frase ?não perturbe ? não destrua? e vem de mãos dadas com uma grande responsabilidade ambiental. A exploração dos campos limpos e selvagens empresta à mesa 500 tipos de ?berries? que vão do vermelho ao azul, ou ainda uma infinidade de cogumelos e, de quebra, a invenção de produtos como o SAV, um espumante que só existe naquele país, feito de seiva de vidoeiro.
O dia a dia de Estocolmo é regado a café, aguardente e cerveja, mais do que vinho. No século XIX, pimentas vindas da Índia e cones de açúcar vindos do Brasil e do Caribe já dividiam espaço com os aromáticos cafés etíopes. Não à toa, a Suécia é hoje o terceiro maior e um dos mais exigentes mercados consumidores da bebida no mundo. O ?Fika?, a hora do café ou chá, é muito mais do que nossa concepção de ?paradinha?. É um ritual que busca sobretudo o equilíbrio na correria da vida, aquecendo o corpo e a alma.
FERMENTADOS E PICLES
O clima também moldou o pão. O knäckebröd, feito com farinha de centeio sem fermento há mais de 1500 anos, é tão duro de pronunciar quanto de mastigar. Era seco para aguentar o inverno e tinha um aro no meio para que pudesse ser pendurado num pedaço de pau junto aos telhados ? formato que mantém até hoje. Por causa do seu sabor neutro, o knäckebröd está fadado a abrir qualquer refeição. E ainda serve de base para os canapés do típico Smörgåsbord.
Historicamente, a produção de comida tinha 120 dias para acontecer. O resultado foi essa cozinha feita de secos, fermentados e preparações em picles. Nas casas mais abastadas, também de salgados e defumados. Junte-se a isso a costa e os lagos de águas congeladas em grande parte do ano. Aí temos pratos como arenque em picles com queijo vasterbotten (granulado como parmesão) ou salmão curado (gravad lax), representando o ?feijão com arroz? dos locais.
O ?caviar? de Kalix, o único produto com denominação de origem protegida do país, está também presente em todos os cantos dos cardápios de Estocolmo ? sobre camarões, com torradas e creme ácido e, sobretudo, ao lado de muita aquavit. Sanduíches abertos com porções de camarões escaláveis (räksmörgås) são absolutamente obrigatórios, assim como os lagostins que, de tão populares, têm um dia de festa nacional em junho.
O sueco médio consome de 50 a 55 quilos de carne e derivados por ano, e de todos os tipos. Almôndegas com lingonberry (frutinha da família da cranberry, de sabor que lembra uma cereja ?aberta?) são o prato nacional. Carnes de veado, alce ou rena também são comuns, mas esta última representa a herança sami, dos povos nativos do Norte.
A cena cervejeira não deixa a desejar. No balcão mais disputado de Estocolmo, o da Omnipollo, torneiras cospem cervejas que deram à cervejaria o título de uma das 100 melhores do mundo pela Ratebeer. Me apaixonei pela Ice Cream Pale Ale, assim batizada por levar uma camada de espuma gelada que monta sobre a bebida como um sorvete. O sucesso do verão sueco bem poderia fazer parte do nosso.
Micro e nanoprodutores ? em minha opinião a nova tendência mundial em gastronomia ? são muito comuns por lá. Sejam criadores de porcos, açougues, queijarias ou fornecedores de legumes, as escalas estão cada vez menores e os alimentos cada vez mais singularizados. No restaurante Frantzén (2 estrelas Michelin e 38 o na lista dos 50 Best), fiz a melhor refeição do ano. O prato de legumes mais incrível de minha vida (?satio tempesta?) veio de dois jardins, um de verão e um de inverno, cultivados pelo próprio chef e dois estagiários.
Ao fim do dia, papeando com um rapaz num café, ouvi que o verão o deixava tão agitado que sonhava com noites longas de inverno que o faziam desacelerar. A verdade, pensei, é que 19 horas de luz é pouco para dar conta de toda a sede gastronômica que a cidade provoca.
Chequei o relógio. Eram 22h45m e anoitecia em Estocolmo.