Cotidiano

Passado e presente, mito ancestral e tecnologia conectados pelo artista inglês Isaac Julien

RIO? Em fevereiro de 2004, uma tragédia vitimou 23 imigrantes chineses que trabalhavam clandestinamente na Grã-Bretanha. Eles catavam mariscos sobre um banco de areia na baía de Morecambe quando foram surpreendidos por uma mudança da maré, morrendo afogados no local. O episódio impressionou o artista inglês Isaac Julien, um dos nomes mais importantes da cena contemporânea quando se trata do atravessamento entre artes visuais e cinema. Julien viajou para a China e se empenhou numa pesquisa profunda, ao longo de quatro anos (de 2004 a 2008), para produzir ?Ten thousand waves?, videoinstalação em cartaz desde sábado no Museu de Arte Contemporânea de Niterói.

?Ten thousand waves? é composta de nove telas penduradas no teto, com a projeção visível dos dois lados. O visitante tem a liberdade de se mover entre elas, usufruindo de uma percepção particular da obra. A narrativa visual e sonora reúne registros reais ? como o dramático pedido de socorro ao serviço de emergência ? a cenas ficcionais, como a de um afogamento. Em Niterói para a montagem da obra, o artista contou por que se sentiu tão atraído por essa história particular, em meio a tantas tragédias relacionadas a imigrantes e exploração de trabalho:

? Eles vieram de uma distância muito grande para realizar o desejo de ter uma vida melhor. Essa luta foi a luta dos meus pais, que saíram do Caribe para a Inglaterra buscando o mesmo. Isso me tocou. Outra questão que me moveu foi tentar entender a tragédia não do meu ponto de vista, mas do ponto de vista de Mazu (deusa chinesa protetora dos mares e dos pescadores), e da região de onde esses catadores de mariscos partiram, na China. A coisa mais poderosa que a arte pode fazer é provocar empatia.

Para criar a obra, Julien foi a Xangai e contou com a parceria de mais de cem artistas e colaboradores. O poeta Wang Ping escreveu dois poemas que são ouvidos em partes da narrativa. A atriz Maggie Cheung (do cultuado filme ?À flor da pele?), encarna Mazu, cujo mito se originou na província de Fujian, mesmo local de onde partiram os catadores de mariscos. Maggie paira sobre paisagens rurais do país, e, em outro momento, tem seu voo desvendado numa cena gravada em estúdio, uma espécie making of.

? Gosto da ideia de relacionar presente e passado, deuses ancestrais e modernidade ? diz Julien.

Essa conexão também está presente em outra cena, quando ele recria, com a jovem atriz Zhao Tao, trechos de um filme chinês clássico dos anos 1930, ?A deusa?.

?Ten thousand waves? chega ao MAC depois de ter sido apresentada em mais de 30 países como EUA (MoMA, em NY), Espanha (museu Reina Sofía, Madri) e França (Fundação Louis Vuitton, Paris). Também foi exibida em duas instituições chinesas e ainda no Brasil, onde integrou uma mostra do artista, no Sesc Pompeia (SP), em 2013. Aqui, ele observa que a circularidade do prédio projetado por Oscar Niemeyer deve influenciar positivamente a experiência do visitante:

? Essa fluidez pode se refletir no modo como as pessoas entram e saem do espaço e se movem entre as telas, e também na percepção da montagem não linear do meu filme.

A obra de Julien compõe a programação de 20 anos do MAC, com curadoria de Luiz Guilherme Vergara. Junto a ela, há as mostras ?Baía de Guanabara: águas e vidas escondidas?, e ?Ephemera: diálogos entre-vistas ? Coleção João Sattamini/MAC?.

?Ten thousand waves?

Onde: MAC ? Mirante da Boa Viagem s/nº, Niterói. (262-2481). Quando: Ter. a dom., das 10h às 18h. Até 23/10. Quanto: R$ 12. classificação: Livre.