Cotidiano

Na Flip, um papo sobre falcões, cachorros e humanos

PARATY – O que há de animal em nós e o que os animais têm de humano. As fronteiras entre homens e bichos foi o tema da mesa ?O falcão e a fênix?, que reuniu na Tenda dos Autores a escritora britânica Helen Macdonald, que lança ?F de Falcão? (Intrínseca) e a escritora e crítica Maria Esther Maciel, autora de ?Literatura e animalidade? (Civilização Brasileira), com mediação do jornalista Roberto Kaz. No seu livro, Helen conta como a prática da falcoaria, uma paixão sua desde a infância, a ajudou a superar o luto pela morte do pai.

Em 2007, sob o impacto da perda, ela decidiu domar um açor, a espécie mais selvagem de falcão. A escritora afirma que domar um bicho como esse é aprender a ser gentil com ele e estabelecer uma relação de confiança. Para Helen, a experiência com Mabel, seu açor, foi uma forma de escapismo.

– Tentar habitar o mundo mental de um falcão era como fugir da realidade. Em determinado momento, eu achei que eu tinha me transformado nela, mas depois percebi que não ? disse. – Mabel me permitiu habitar um outro corpo enquanto eu me reconstruía após a morte do meu pai, até eu me tornar outra pessoa.

Maria Esther lembrou que a animalidade do homem foi sendo recalcada desde a Idade Média, quando passou a ser associada com a loucura, a sexualidade, todas as formas de desvio. Com a filosofia de Descartes e o racionalismo, a animalidade foi deixada de lado por uma segunda vez. Só no século XX essas fronteiras seriam borradas na literatura, como em ?A metamorfose? de Franz Kafka. Ela defende a comunicação entre humanos e animais, mas explica que isso se dá na forma de tradução de diferentes linguagens. E deu o exemplo de sua própria cachorra, Lalinha.

– Com a minha cachorra, a comunicação se dava através do olhar, a troca de olhares era fundamental para romper com a impossibilidade de se entender através da linguagem ? contou. – A Lalinha despertou a minha animalidade e o reconhecimento dos saberes dos animais. Cabe aos escritores e poetas capturar a subjetividade dos animais e colocá-la em palavras.

Helen estabeleceu uma relação muito próxima com Mabel. As duas viam programas de TV juntas e o açor mordiscava o seu cabelo. A escritora conta que, quando passava um comercial de uísque protagonizado por um ganso, Mabel ficava muito excitada (falcões gostam especialmente de caçar gansos). Contudo, uma certa vez, o açor a confundiu com um faisão, a atacou e ela ficou com a cabeça ensaguentada.

– Foi apenas um mal-entendido ? afirmou Helen, aos risos. Para a escritora, Mabel não sabia pelo momento que ela passava. – Não acho que ela soubesse. Hoje tenho um papagaio que reconhece quando estou mal e tenta me deixar melhor. Mas, sem Mabel, provavelmente teria escolhido outro caminho para superar o luto, drogas ou álcool.

Já no final da mesa, Maria Esther falou de um anúncio feito por neurocientistas britânicos em 2012, em Cambridge, de que os animais tinham consciência. Na sua opinião, vivemos um paradoxo.

– Mamíferos, aves, alguns moluscos têm consciência. O manifesto legitimou algo que todos nós sabemos: os animais têm uma maneira de pensar diferente de nós, tem um saber próprio. A cadela Baleia, de ?Vidas secas?, foi tida como humanizada, mas Graciliano tinha conhecimento de cães. Baleia sente, ama, é solidária ? disse a crítica. – Ao mesmo tempo, não tenho uma perspectiva otimista para o mundo animal. A vida selvagem está restringida a reservas. O agronegócio se expande e toma tudo. Nas granjas, eles são tratados como objetos. É um paradoxo.