RIO ? Há 40 anos Lucélia Santos se tornava mundialmente conhecida como a protagonista de ?Escrava Isaura? (1976) ? sim, mundialmente, já que a trama de Gilberto Braga se tornou, de lá pra cá, a novela mais dublada e retransmitida em todo o mundo. Todo aquele sucesso devia-se, sobretudo, ao envolvimento emocional do público com a história de Isaura, uma escrava branca em desesperada luta por liberdade, contra a obsessão persecutória de Leôncio. Pouco tempo depois, livre da fama de Isaura, Lucélia ganharia outra marca: a de ?musa rodriguiana?, ao encarnar as libertárias personagens do dramaturgo em alguns dos principais filmes já realizados a partir da obra de Nelson. Hoje, quatro décadas após o estouro e cinco anos depois de sua última aparição em cena, Lucélia retorna ao teatro para, mais uma vez, reafirmar sua vocação para personagens libertárias.
Em ?Teresinha?, primeiro monólogo da sua carreira, e que estreia hoje no Sesc Tijuca, a atriz encarna Santa Teresa D?Ávila (1515-1582) e dá voz às suas muitas lutas, sobretudo pela liberdade de estabelecer uma relação íntima e apaixonada com Deus Pai e seu filho, Jesus Cristo ? num dado momento da sua vida, a santa espanhola atinge um estágio tão avançado de oração que passa a relatar visitas pessoais que recebe de Deus, Cristo e outros santos em sua residência. Tratada como impostora, acusada de alucinação ou de estar possuída por demônios, Teresinha, antes de ser canonizada, foi demonizada e por pouco não ardeu nas chamas da Inquisição.
? Teresa foi uma mulher revolucionária em muitos sentidos e, como tal, foi mal compreendida e ameaçada. Ela viveu sempre na berlinda, entre ser vista como santa ou fruto do demônio ? diz o diretor e idealizador da peça, Bruno Siniscalchi.
Ao manter-se fiel à sua crença e à liberdade de poder relatar ao mundo as experiências místicas que vivia, Teresa foi, por fim, santificada.
? Ela foi uma mulher libertária, sobretudo no que se refere à paixão, e fascinante por ter colocado a paixão num lugar amoral e proibido, afinal ela se apaixona por Deus, por Cristo ? diz o diretor. ? Ela dedica sua vida a essa relação e, para isso, abdica do mundo, cria um monastério, revoluciona a sua vida em prol de uma paixão que inventa. A peça acompanha essa sua busca, sobretudo por se libertar desse mundo.
Com Lucélia no papel-título e texto inédito do escritor André Sant?Anna, a dramaturgia se inspira em fragmentos da autobiografia de Teresa, o ?Livro da vida?, e se apresenta em cena como uma saga. Em sua devoção irrestrita há uma política de ruptura com a vida mundana, e a peça acompanha esse périplo, um longo e doloroso processo de libertação que se dá através da oração e do aperfeiçoamento de sua comunicação com o Criador.
? Parodiando Teresinha, eu não ando muito interessada em discutir com a sociedade do mundo. Gostaria de estabelecer um padrão de comunicação unicamente através dos textos que enceno ? diz Lucélia, através de uma mensagem escrita por e-mail. ? Tenho sentido o teatro, a profissão de atriz, como o meu sistema de comunicação com o mundo. Hoje, em 2017, o teatro está para mim assim como o mosteiro estava para Teresa, em 1532. É a mesma dimensão, a mesma intensidade, a mesma entrega, o mesmo refúgio. É assim que me sinto: como se não tivesse ar fora da caixa preta.
O projeto é a terceira parceria entre Siniscalchi e Sant?Anna, que criaram juntos a peça ?Todas as possibilidades? (2014), uma adaptação autoral feita por Sant?Anna a partir de ?O homem sem qualidades?, de Robert Musil. Em 2015, foi a vez de ?Todas as possibilidades ? Parte II?, e, em 2016, da performance ?O Brasil é bom?, a partir do livro homônimo de Sant?Anna, que também foi levado ao palco por Felipe Hirsch em seu projeto ?Puzzle?. Autor de livros como ?O paraíso é bem bacana? (2006) e ?O Brasil é bom? (2014), ele tem tido seus contos levados à cena com frequência, assim como tem escrito cada vez mais para o palco.
Em seus textos, costuma encarnar personas distantes de si ? ?Eu me coloco dentro da cabeça dessas figuras e começo a pensar como elas?, diz ?, em sua maioria sujeitos virulentos, radicais, que geram uma linguagem verborrágica e transbordam ódio, ironia, preconceitos e rancor. Sant?Anna, assim, assume a pele e a voz dos sujeitos sociais que busca criticar. Em ?Teresinha?, ele teve de assumir a voz de uma santa, mas diz que o fez com toda a devoção do mundo, sem ironia alguma.
? É o meu texto mais puro, mais sutil. Quando falo em Santa Teresa e digo que estou escrevendo essa peça, as pessoas imaginam que vai ter cena de sexo da Santa com Deus, orgasmos com Jesus, mas procurei fugir disso. Sei que me chamam para escrever coisas malucas, escabrosas, mas esse é o meu texto mais singelo ? conta. ? Lendo Teresinha sinto que o que ela diz tem a ver com outro tipo de orgasmo. Os textos dela têm a ver com psicanálise, com o budismo, há uma busca por Deus que se aproxima da busca pelo nirvana. O que a interessa não é a terra, mas uma meditação capaz de transportá-la para o lado de fora. O que interessa é sair desse mundo o mais rápido possível e encontrar com Deus. É uma história de amor romântico, de uma mulher que se casa com Deus, que dedica sua vida a ele, mas não para fazer sexo, mas para tomar uma sopinha com ele, conversar e fugir desse mundo.
Serviço ? ?Teresinha?:
?Teresinha?
Onde: Sesc Tijuca ? Rua Barão de Mesquita, 539 (3238-2139).
Quando: Sex. a dom., às 20h. Até 26/3.
Quanto: R$ 25.
Classificação: 16 anos.