O nome era Carlos Leão, mas os mais próximos (eram muitos) o chamavam de Caloca. Ora projetava gigantes do modernismo ? com suas linhas retas e sóbrias e seus espaços livres ?, ora desenhava figuras femininas: nuas, quentes e cheias de curvas. O trato era finíssimo ? dizem que era figura das mais cultas, possuidor de uma sensibilidade artística apurada ?, mas, ao mesmo tempo, sabia ser simples. Basta dizer que acompanhava, de igual para igual, a boemia de Vinicius de Moraes.
Essas mil e uma facetas de uma só pessoa aparecem esmiuçadas, por meio de seus projetos, no livro ?Carlos Leão ? Arquitetura?, lançado pela Bazar do Tempo, com coedição da Dois Um, na última terça-feira.
A obra, que serve como uma redescoberta de seu trabalho como arquiteto (ele ficou muito mais conhecido por suas mulheres nuas), traz 120 desenhos originais, entre croquis, anteprojetos ou projetos definitivos, de obras tiradas do papel ou apenas esboçadas. Lucio Costa (de quem foi sócio e companheiro de ideias) e Vinicius de Moraes (além de amigos, suas mulheres eram irmãs) comentam a vida e obra de Caloca nesta edição, cujo esqueleto foi preparado por Jorge Czajkowski, em meados dos anos 1980.
Um de seus projetos mais conhecidos talvez seja o Edifício Capanema, pensado, na época, para servir como sede do Ministério da Educação e Saúde. Formado pela Escola de Belas Artes, em 1931, ele rabiscou as linhas do prédio ao lado de figuras como Lucio Costa, Affonso Eduardo Reidy, Ernani Vasconcellos, Jorge Machado Moreira e Oscar Niemeyer, na época, pasmem, um mero estagiário.
A obra do Capanema foi idealizada pelo franco-suíço Le Corbusier, considerado um dos maiores ícones da área no século XX. A partir desse momento, toda vez que Lucio Costa estava na Europa e cruzava com Le Corbusier, este perguntava: ?Et Léon, comment va-t-il?? (?E o Léon, como ele vai??, afrancesando o nome do arquiteto).
Quem conheceu Caloca conta que ele tinha fama de ser uma dessas pessoas magnéticas, que atraem quem está por perto sem fazer muito esforço para que isso aconteça. A cantora Adriana Calcanhotto se enquadra nesse grupo, mesmo que ela não tenha tido oportunidade de conhecer o arquiteto, morto aos 77 anos, em 1983.
Adriana foi casada com Susana de Moraes, filha de Vinicius e sobrinha de Leão, e herdou uma série de desenhos, tintas e antigos pincéis do arquiteto. Para ela, que ajudou a levantar recursos para tirar o livro do campo das ideias, uma das histórias que mais o traduzem é a de que Caloca, quando ficou mais velho, costumava abaixar o volume do aparelho auditivo toda vez que a conversa ficava mais chata.
? Isso define muito a personalidade dele. Ele tinha um desprendimento incrível… até com relação à arquitetura, que ele decidiu largar mais tarde. Nesse ponto, Caloca e Vinicius eram muito parecidos. Se eles não estivessem muito felizes, mudavam de rumo ? define Adriana Calcanhotto. ? Carlos Leão era multifacetado, uma pessoa completamente plural. Ao mesmo tempo que desenhava grandes prédios, fazia casas muito aconchegantes, pensando na vida das pessoas. Eram projetos muito acolhedores.
Dois exemplos são uma casa e um ateliê da urbanista e paisagista Lota de Macedo Soares, em Samambaia, Petrópolis ? não confundir com a famosa Casa da Samambaia, de Sergio Bernardes. Os imóveis têm pátios e aberturas estratégicas, que deixavam passar luz e ventilação naturais. Outras duas joias são as casas desenhadas para a família de Leão, em Niterói e em Valença. Vinicius de Moraes eternizou a primeira nos versos de ?Balada do Cavalão?.
Na casa de Caloca, o poetinha balançava na rede, sobre um ?chão de garrafas vazias e limão?. Observava os ?cardumes de aves no cristal rosa do ar?, o oceano e as flores e reclamava que a vida passava depressa, apesar do poder de sossego do Cavalão. Dizem que foi lá também que Vinicius começou a rabiscar as primeiras linhas de ?Orfeu da Conceição?.
No livro, o poeta diz que Caloca ?sempre relutou muito para fazer projetos, a não ser quando lhe era dada completa liberdade. (…) Mas quem teve a sorte de obter-lhe um projeto é possuidor de uma verdadeira casa, bela, sólida e confortável. (…) Pois Carlos Leão pratica, a meu ver, a verdadeira modernidade, a verdadeira funcionalidade, fazendo casas assim como foram feitas Marilyn Monroe ou Sophia Loren: belas e esplêndidas sem afetação e boas para morar?.
Na Fazenda Vargas, ele se entregou por inteiro. O crítico de arte e arquitetura Roberto Conduru, que fez alguns verbetes do livro, conta que Caloca pensou no jardim de ervas, curral, piscina, móveis, quadros, fachada, capela, ou seja, tudo. A edição traz os desenhos que estampam os azulejos da fazenda.
? Ele pensava realmente em como os moradores iriam viver, ao contrário de alguns arquitetos que sacrificam a vida da pessoa em nome da linguagem ? explica Conduru. ? Ele, como muitos modernistas do Rio, escolheu Le Corbusier como referência maior. Mas o que diferenciava Caloca eram as ?casas brasileiras?, como chamava Jorge Czajkowski. É quase como se ele fizesse uma abstração da casa tradicional, mas ela ainda permanecesse de algum modo ali. Ele lidava bem com a tradição.
Para Conduro, a obra de Caloca é peculiar por ele ter desenhado muitos projetos modernos, mas, ao mesmo tempo, ter feito parte de uma geração que não conseguiu emplacar tantas obras dentro desse conceito.
O crítico conta que havia um certo receio das famílias em adaptar o modernismo para suas residências, por isso, ele acabou fazendo muitos projetos para amigos. Mas, ao que tudo indica, Caloca não se importava muito com o que os outros pensavam. Certo dia, disse à sobrinha Susana que ?uma boa arquitetura é como boa música, capaz de modificar o que você está sentindo ? ritmos, proporções, harmonia?.
Encantada com Caloca, Adriana Calcanhotto já cogita fazer um segundo livro, desta vez sobre a produção artística do arquiteto. Ana Cecilia Impellizieri, editora da Bazar do Tempo, lembra que a Fazenda Vargas servia como um QG da família, para onde Leão levava muitas de suas modelos. A cineasta Ana Maria Magalhães e Vera Barreto, nora de Vinicius de Moraes, figuram entre elas.
? Os nus de Caloca têm traços nitidamente inspirados nos desenhos japoneses. São leves, com proporções lindas, muito orientais ? diz Adriana. ? O que eu acho mais interessante é que para cada modelo ele tinha um tipo de traço. Era a química que ele tinha com aquela mulher. Isso é bem bonito. E tem de tudo: cores, preto e branco, só duas cores. Dá para ver pelo livro de arquitetura. É muito alegre, muito matisseano ? derrete.
A obra, que ainda não tem data para ser publicada, também deve incluir algumas charges e versinhos que ele fazia para os amigos ? coisa que nem quem conhece um pouquinho dele viu ainda.
Por azar ou por sorte, como disse Lucio Costa, ?a persistência desse traço que o marcou desde cedo ? estimulado depois, inclusive, pela graça da presença caseira de Susana, sua sobrinha ? o levou a se apegar cada vez mais ao íntimo convívio visual feminino através do desenho com toques de aquarela. Só que, no confronto desigual desse trato amoroso, com o correr do tempo, como é natural, a arquitetura perdeu.? Com o livro, eis uma chance de recuperá-la.