RIO ? Há mundo por vir? Ou o céu irá, como dizem os índios ianomâmis, cair sobre nossas cabeças? Tais respostas ? ainda em aberto ? dependem, de certo modo, da qualidade da relação entre a espécie humana e a Terra. Sensível às questões ambientais e aos dilemas urbanos, a coreógrafa Lia Rodrigues, 60 anos, tomou dois livros como inspiração para o seu novo trabalho, ?Para que o céu não caia?, que estreia nesta quinta-feira: ?Há mundo por vir?? (2015), de Deborah Danowski e Eduardo Viveiros de Castro, e ?A queda do céu? (2010), do xamã Davi Kopenawa. A partir deles, a constatação do impacto humano no planeta e o vislumbre de um horizonte sombrio à frente levaram Lia a imaginar o que ela e os 11 bailarinos da sua Cia. poderiam fazer para manter o céu lá no alto, sem despencar sobre nós.
Em meio a tais indagações, a relação da coreógrafa com o cotidiano do Complexo da Maré não foi deixada de lado. Há 12 anos estabelecida por lá, Lia uniu suas inquietações para lançar perguntas sobre o presente da comunidade e o futuro da Terra. Assim, ?Para que o céu não caia? resulta, portanto, de suas tentativas de resposta ? em forma de dança e movimento ? às barbáries da violência e às catástrofes climáticas. Ao GLOBO, Lia falou sobre os conceitos da nova obra, sobre as forças de resistência necessárias para seguir dançando sem se desviar dos problemas do Brasil contemporâneo, e criticou a ausência de políticas culturais perenes como um entrave à continuidade de trabalhos que unem pedagogia e pesquisa artística, como o seu. Afinal, mesmo com 26 anos de Cia., mais de 20 obras criadas e de uma coleção respeitável de prêmios e homenagens mundo afora, Lia segue sem patrocínio contínuo e, por isso, sem saber muito bem o que será do amanhã. Mas como para o artista todo mistério é, também, inspiração, Lia segue à frente, e firme.
Nos últimos anos você conquistou prêmios e honrarias internacionais, como o Prince Claus (Holanda, 2014) e o Prêmio SACD (França, 2016), e há muito tempo a Cia. se apresenta nos mais importantes teatros e festivais fora do país. Qual é a importância, hoje, desse circuito internacional para a companhia?
Fora do Brasil, existem instituições e festivais que acompanham um artista e suas criações ao longo do tempo, e que hoje nos coproduzem, com dinheiro para produção, apresentação e circulação num circuito sólido, o que não há no Brasil.
A nova obra estreou na Alemanha, e tem patrocínio da prefeitura do Rio e de oito produtores de fora.
Já fomos à Alemanha, à França, e essa temporada no Rio é viabilizada por um edital da prefeitura que concorremos e ganhamos. Aqui, já tivemos vários patrocínios, mas nunca continuados. Hoje, só consigo manter a companhia e a Escola Livre de Dança por conta dos parceiros fora, que formam uma rede que possibilita a nossa sobrevivência. Mas a escola, por exemplo, sendo um projeto de educação, precisa de planos a longo prazo, o que não acontece. Nunca sabemos se teremos ou não apoio no ano seguinte. O mesmo acontece na companhia. Tenho conseguido me equilibrar, mas está difícil, e não sei se é possível continuar do jeito que eu acredito. A companhia e a escola são espaços de formação de artistas de dança. Boa parte dos bailarinos está com a gente há anos, e isso dá um corpo e um vigor ao trabalho. Acredito no resultado dessa convivência, da continuidade. Meu espaço lá fora foi criado tijolo a tijolo, não foi um sucesso repentino. Foi e ainda é uma construção. Não acho que o artista precisa fazer sempre obras geniais. Acredito no trabalho que se faz no tempo.
Como surgiu a nova obra?
Sinto que não há o final de um trabalho e o começo do outro. Quando um termina, abre-se uma janela para o próximo, e foi o que senti após ?Pindorama? (2013). Achava que ?Pororoca? (2009), ?Piracema? (2011) e ?Pindorama? (2013) fechavam uma trilogia, mas ?Para que o céu não caia? surgiu da vontade de descobrir novos passos na minha relação com a Maré e avançar o trabalho com esses bailarinos, e calhou de o trabalho começar também com a letra ?p?. Mas ele começou quando ganhamos um patrocínio para fazer um questionário afetivo e cultural na Maré. Integramos o nosso elenco com os alunos da escola, e isso resultou num grupo de 30 pessoas que circularam pela Maré realizando encontros com moradores. Depois, pedi para que eles criassem respostas cênicas a partir dos encontros, e foi surpreendente. Adiante, fizemos uma performance nas ruas da Maré pela campanha Jovem Negro Vivo, da Anistia Internacional, e a sequência desses dois pontos deram partida à obra. As questões da Maré e das vidas dos moradores estão muito presentes na minha vida e no meu trabalho.
Em que ponto a violência e os riscos diários na Maré se conectam ao tema ambiental, aos riscos que corremos diante das mudanças climáticas, por exemplo?
Essa criação nasce do sentimento de perplexidade diante dos acontecimentos no Brasil, no mundo, no planeta. Como uma reação a esse momento que parece sem respostas. Acompanho as questões climáticas e ambientais há anos. Leio sobre isso e tenho um compromisso ecológico no meu trabalho, inclusive, sempre trabalhando com certas restrições, ou seja, sem grandes cenários, buscando o que é essencial para cada obra… Mas aconteceu de eu me deparar com o livro do Kopenawa (?A queda do céu?), quando ele foi editado na França, e fiquei impressionada. Eu já vinha lendo o Eduardo Viveiros de Castro, então comecei a jogar esses assuntos na companhia, e me perguntando: como tudo isso vira algo em dança?
Essa dúvida é o motor?
Sim, porque dançar é a nossa profissão. Não somos escritores nem filósofos, mas artistas de dança. Então investigo como a nossa linguagem pode abordar isso sem me preocupar em traduzir um livro em dança. Não sou antropóloga, mas coreógrafa, então me sinto livre para ler esses livros e usá-los como numa espécie de sonho, para poetizá-los, e tendo certeza de que eles estarão na obra. Foram nove meses de trabalho diário, de perguntas… É sempre importante perguntar por que a gente vai dançar nesse momento. A gente dança pra que, por quê? Pra que dançar?
De que modo o risco, ou essa ameaça da ?queda do céu?, é vivenciada em cena? De que modo os corpos transmitem esse aspecto?
Penso que o que a gente faz é arriscado em diversos níveis. É arriscado viver e trabalhar na Maré, dançar… Me pergunto como é possível ser um bailarino nesse mundo. O que a dança faz pelo mundo? Como continuar e agir? São riscos que enfrentamos. É o risco de não ter dinheiro no ano que vem para trabalhar. Estou há mais de 40 anos nessa área e nunca senti um respiro, o risco é permanente. E na Maré, ainda mais. Lá, todos esses riscos estão latentes, são coisas que a gente vive e que nos afetam, e como é que podemos criar poesia com isso tudo?
?Pindorama? fazia poesia com a água e com o ar. E agora?
Lidamos mais com a terra, com as cores. Fizemos experiências com pó de café, farinha, açafrão e elementos que nos levaram à ideia de transformação, de máscaras, de você virar o outro, do seu encontro com o outro, com o diferente. A pergunta era ?O que cada um pode fazer para, a seu modo, segurar o céu??, e criamos formas de segurar o céu.
E como se segura o céu?
Por exemplo, estou com o pé quebrado, e uma amiga veio cozinhar para mim: segurou o meu céu. A gente segura o céu de várias maneiras, no íntimo e no coletivo, como por exemplo o trabalho conjunto que a Redes da Maré faz junto com a Cia. e a Escola. A gente segura juntos um céu, um céuzão. Então segurar o céu tem a ver com uma consciência ecológica e com uma consciência política, isso envolve o nosso cuidado com o outro, tem a ver, também, com em quem a gente vota. O caos que a gente vive hoje no Brasil nos leva a pensar que céu é esse diante de nós. Não sabemos o que o futuro nos reserva, mas o futuro depende do que a gente faz agora, das nossas ações no presente.
Serviço ? ?Para que o céu não caia?
Onde: Centro de Artes da Maré ? R. Bittencourt Sampaio, 181 (3105-7265).
Quando: Qui. e sex., 19h; sáb. e dom., 18h. Até o dia 28.
Quanto: Grátis.
Classificação: 16 anos.