Cotidiano

Leia trechos de 'Uma história do samba ? As origens'

“A constatação de que o Rei de Ouro fundado por Hilário chegara para instituir uma nova forma de folia, mais disciplinada e ordeira, com cordas de isolamento separando os brincantes do público das calçadas, vinha a calhar com os propósitos das autoridades desejosas por ‘civilizar’ o Rio de Janeiro. Aos olhos do aparato repressivo, era preferível os moradores da zona portuária se reunirem durante o Carnaval em torno de ranchos de origem natalina e vagamente católica a vê?los envolvidos, por exemplo, nos alvoroços do entrudo ou nos cortejos dos velhos cordões e cucumbis. ‘E dizer?se que há gente neste mundo que se diverte com essa isocronia enfadonha’, já repudiara o Diário de Notícias.” Links da matéria sobre samba

“Quanto mais Sinhô ganhava notoriedade, maior se tornava sua capacidade de se meter em sarrabulho. Só os muito distraídos deixariam de perceber ser a melodia de ‘Pé de anjo’ uma cópia deslavada, apenas em andamento mais rápido, da valsa francesa ‘C?Est Pas Difficile’, de J. Dorin (gravada no Brasil por Eduardo das Neves em versão intitulada ‘Geni’). Sinhô continuava trabalhando como pianista da Casa Beethoven e, certo dia, atendera uma freguesa que lhe pedira para executar a valsa parisiense. Após a cliente sair da loja, ele permaneceu ao piano, acrescentou novas frases melódicas e acelerou o ritmo em relação à composição original. Assim nascera a música de maior sucesso do ano.”

?’O acusado é vadio conhecido, vivendo de espertezas da mesma natureza, enganando as pessoas de boa?fé’, constou no auto de prisão em flagrante. E ainda acrescentou o escrivão, seguindo a fórmula de praxe:
‘Ele não tem profissão, arte, ofício ou ocupação da qual possa tirar, pelos meios honestos, o necessário à sua subsistência e manutenção, sendo, com frequência, encontrado no meio de indivíduos de maus antecedentes sempre à procura de uma vítima para explorá?la.’
Interrogado pelo delegado Francisco Cristóvão Cardoso ? que se vangloriava de ser o terror dos arruaceiros e vagabundos do bairro do Estácio ?, o moço afirmou ter 21 anos de idade, ser solteiro, trabalhar no comércio e morar no número 275 da rua Frei Caneca. Chamava?se Ismael Silva.”

“Não havia ingênuos, vale dizer, naquele tipo de negócio. Internamente, entre os talentosos estacianos, também vigorava a lei do mais esperto ? e, não raro, a do mais forte. Osvaldo Vasques, o Baiaco, por exemplo, amigo de Ismael e fundador da Deixa Falar, era um reconhecido ladrão de sambas. Tinha um método de ‘compor’ bem pouco virtuoso. Preso várias vezes por vadiagem, violência sexual e agressão ? arrolado em nada menos que dezoito inquéritos entre os anos de 1926 e 1930 ?, Baiaco sempre encontrava uma forma de puxar conversa quando sabia que, em um botequim qualquer, o cliente da mesa ao lado era aspirante a sambista. Achegava?se, cheio de mesuras, e pedia para o sujeito cantarolar alguma de suas composições mais recentes. Enquanto isso, alguém sentado próximo e de orelha ligada, em geral o flautista Benedito Lacerda (um dos únicos da turma que sabia escrever música), passava sorrateiramente a melodia para a pauta.Ao final, simulando indignação, Baiaco rugia: ‘Quer dizer, seu sem?vergonha, que este samba é seu? Pois fique sabendo que eu e o Benedito Lacerda fizemos ele há muito tempo’. Chamando então o cúmplice para mais perto, prosseguia com a encenação: ‘Benedito, canta para este salafrário o samba que a gente fez outro dia’.?

“Certa noite, Arnaldo Guinle, que por acaso também estava em Paris ? para Guinle, atravessar o Atlântico era algo tão rotineiro quanto abrir uma garrafa de Veuve Clicquot em Copacabana ?, decidiu chamar a atenção de Pixinguinha para o saxofonista de uma jazz?band norte?americana qualquer. ‘Você toca aquilo, Pixinguinha?’, perguntou Guinle, apontando para o saxofone. O músico jamais tinha se arriscado no instrumento. Mas disse que sim. Um mês depois, recebeu de Arnaldo Guinle um sax tenor novinho em folha, mandado confeccionar especialmente para ele. Pixinguinha trancou?se no quarto do hotel e dedilhou as teclas, por vários dias consecutivos, até dominar a escala com a destreza necessária. Entretanto, por algum tempo, evitou tocar o instrumento em público. Perfeccionista, continuou apresentando?se com a velha flauta Barlassina & Billoro comprada pelo pai e sua companheira desde os tempos das calças curtas. Porém, ainda que só os outros batutas já soubessem disso, a partir dali Pixinguinha e o sax prateado ? sua futura marca registrada ? tornaram?se indissociáveis.”

“Nessa toada, Deolinda sustentava o barraco praticamente sozinha, lavando roupa para fora. Grandalhona, ela vencia no grito ? e no muque ? as frequentes discussões do casal. O notívago Cartola baixava a voz e, por mais de uma vez, andou levando umas boas bordoadas da mulher. Apesar disso, continuava aprontando das suas. Certo dia, foi obrigado a sair correndo pelo morro com as calças na mão, após ser flagrado na cama com a esposa de um camarada de samba, Marcelino José Claudino, o Massu. ‘O homem, com um punhal desse tamanho, não sabia se furava a mulher ou me furava’, narraria depois Cartola, em entrevista à revista Manchete. ‘Ele pegou no meu cangote magro. Tudo o que ele dizia, bufando, de minha mãe, eu concordava, chorando. Ele preferiu livrar minha cara, senão você estava entrevistando o Cartola na sessão espírita’.?