RIO ? A ocupação da Terra pelos humanos modernos (Homo sapiens) é um dos temas mais complexos da história de nossa espécie, mas também um dos que têm maior potencial de revelar o que nos faz essencialmente humanos. Saber quando e como nossos ancestrais saíram de seu berço na África e chegaram a praticamente todos os cantos do planeta, superando obstáculos como desertos, gelo, oceanos e cordilheiras, pode nos ajudar a entender melhor a enorme variedade tanto de nossa herança genética quanto da cultural. E agora três estudos genéticos e um de modelagem climática publicados nesta quarta-feira na prestigiada revista ?Nature? trazem ainda mais respostas, e dúvidas, sobre este processo.
Nos três estudos genéticos, os cientistas sequenciaram o genoma de quase 800 indivíduos de mais de 280 populações espalhadas pela Terra, algumas delas nunca antes analisadas em detalhes, em busca de variações que pudessem dar mais pistas sobre a cronologia e número de ondas migratórias dos humanos modernos a partir da África, chegando a conclusões conflitantes.
No primeiro deles, pesquisadores liderados por David Reich, da Universidade de Harvard, EUA, relatam o sequenciamento do genoma de 300 pessoas de 142 populações diferentes geralmente pouco representadas em estudos de grande escala sobre a variabilidade genética humana. Segundo eles, as análises indicam que as populações humanas atuais começaram a se diferenciar umas das outras há pelo menos 200 mil anos, com as não africanas acumulando mutações a um ritmo superior ao das populações africanas. Segundo eles, este e outros resultados sugerem que todas populações não africanas de hoje são descendentes de uma única população ancestral que deixou nosso continente de origem em uma onda migratória até 100 mil anos atrás, com ela divergindo apenas posteriormente em duas que seguiram para o Leste e o Oeste da Eurásia.
Já no segundo estudo, os cientistas procuraram retraçar a história genômica dos aborígenes australianos, formada por populações em grande parte geneticamente distintas e cuja chegada na Oceania há estimados mais de 50 mil anos por vezes é usada como argumento para defender a ideia de múltiplas ondas migratórias dos humanos modernos a partir da África. Assim, os pesquisadores liderados por Mait Metspalu, do Biocentro da Estônia, contaram com a colaboração de anciões e líderes tribais dos aborígenes ? que assinam o artigo como coautores – para obter e sequenciar o DNA de 83 indivíduos destas populações, além de 25 da vizinha Papua-Nova Guiné.
Segundo os pesquisadores, as populações aborígenes da Austrália as de Papua-Nova Guiné teriam se separado das de Europeus e Asiáticos há cerca de 58 mil anos, e depois os australianos de diferenciaram de seus vizinhos há aproximadamente 37 mil anos. Além disso, as diferenças genéticas entre as próprias populações de aborígenes australianos é similar em magnitude às que separam os europeus de indivíduos do Leste da Ásia, numa indicação de que eles de fato ocuparam o continente há muito tempo. Por fim, no entanto, eles argumentam que se forem excluídos do genoma dos aborígenes os significativos trechos de DNA herdados de outras espécies humanas arcaicas, como os neandertais e os denisovans, o que resta não difere muito do que seria uma população ancestral em comum com europeus e asiáticos, reforçando a hipótese de uma onda migratória única da África.
– As discussões quanto até onde os aborígenes australianos representam uma saída da África em separado daquela de asiáticos e europeus tem sido intensas, mas descobrimos que, uma vez levando em conta a miscigenação com outros humanos arcaicos, a grande maioria da constituição genética dos aborígenes australianos vem de mesma saída da África que as outras populações não africanas ? aponta Laurent Excoffier, pesquisador da Universidade de Berna, Suíça, responsável por algumas das principais análises do estudo.
Na contramão destas conclusões sobre uma única onda migratória da África, porém, está o terceiro estudo, encabeçado por Luca Pagani, vinculado ao mesmo Biocentro da Estônia e às universidades de Cambridge, Reino Unido, e de Bolonha, Itália. Nele, os pesquisadores acrescentaram 379 novos genomas de indivíduos de 125 populações, principalmente europeias, a uma base de dados genéticos sobre 148 populações ao redor do mundo. Segundo eles, as análises do conjunto indicam que pelo menos 2% do genoma dos atuais habitantes de Papua-Nova Guiné refletem a ancestralidade de uma população distinta que divergiu dos africanos antes dos eurasianos. Com isso, eles acreditam que ter encontrado evidências de pelo menos uma antiga e separada migração desde a África há aproximadamente 120 mil anos que levou ao povoamento da região.
Mas qualquer que tenha sido a forma da ocupação da Terra pelos humanos modernos pela Terra, se em uma ou várias ondas migratórias desde a África, ela provavelmente foi guiada por mudanças climáticas causadas por pequenas alterações na órbita do planeta, sugerem os autores de um quarto estudo também publicado nesta edição da ?Nature?. De acordo com Axel Timmermann e Tobias Friedrich, ambos da Universidade do Havaí, foi só por causa das alterações no clima que nossos ancestrais decidiram deixar seu berço na África em direção da região da Península Arábica entre 120 mil e 90 mil anos atrás. Dali, mais mudanças climáticas deflagraram outros surtos migratórios com destino ao Sul da Ásia, Indonésia e Austrália por volta de 60 mil a 50 mil anos atrás, da Europa há aproximadamente 60 mil a 40 mil anos, para o Norte da Ásia há 20 mil anos e finalmente a entrada nas Américas cerca de 15 mil anos atrás.
E é justamente diante de um cenário tão complexo que Serena Tucci e Joshua Akey, do Departamento de Ciências Genômicas da Universidade de Washington, EUA, destacam em comentário também na ?Nature? que embora os estudos forneçam algumas peças faltantes no quebra-cabeça da história da Humanidade, ainda restam muitas perguntas.
?A contínua amostragem da diversidade genômica humana e o desenvolvimento de ferramentas estatísticas cada vez mais sofisticadas prometem revelar ainda mais segredos sobre nosso passado. Apesar disso, é crucial reconhecer os limites da genética. Com já anteriormente mostrado, será necessária a integração de dados entre disciplinas tradicionalmente distintas, como a linguísticam a arqueologia, a antropologia e a genética para que possamos retraçar completamente os passos tomados pelos humanos antigos à medida que exploraram e colonizaram o mundo?, conclui a dupla.