Cotidiano

Dois referendos em dois anos revelam crise no Reino Unido

2016 918260020-201606221056516612_AFP.jpg_20160622.jpgLONDRES ? A convocação de dois referendos potencialmente devastadores em dois anos, o da independência da Escócia e a votação sobre a permanência ou não na União Europeia (UE), dão uma ideia da crise existencial do Reino Unido, preso entre a nostalgia e o temor do futuro.

Há apenas 60 anos, a Grã-Bretanha reinava como um império que, em seu auge, reunia 25% da população mundial. Hoje tem um território um pouco maior do que o da Islândia. CONTEÚDO BREXIT PAPEL 2306

No debate, a Inglaterra está na linha de frente. Motor econômico, cultural e demográfico do Reino Unido é a mais ameaçado pela explosão. Mas também é a menos pró-europeia das quatro nações constituintes.

? Não vamos nos transformar na ?pequena Inglaterra? ? implorou o primeiro-ministro David Cameron, partidário da UE, recorrendo a um termo usado para definir uma mentalidade insular e paroquial.

Para Michael Skey, especialista em questões de identidade na Universidade de Loughborough, o referendo foi um sinal da incapacidade de assumir que o país não é mais um império.

? Aqueles, sobretudo as pessoas mais velhas, que já não se reconhecem em uma sociedade mais diversa são mais receptivos a um discurso que propõe entrar em uma máquina do tempo e começar de novo. Eles dizem, ?Ah!, se pudéssemos largar esta maldita Europa e começar de novo? ? explico Skey à AFP.

?NOSSA REVOLUÇÃO FRANCESA?

Por este motivo, afirma Skey, as incessantes referências ao passado e, em particular, à Segunda Guerra Mundial, o último grande momento de glória antes da desintegração do império, ?a última vez em que a Grã-Bretanha contou de verdade?.

Mais de 70 anos depois de vencer os nazistas, a recordação da guerra permanece muito viva no Reino Unido: os caças Spitfire sobrevoam Londres regularmente e Winston Churchill é citado em todos os debates.

Na Eurocopa-2016, os torcedores ingleses cantam a cada partida sobre como ?a RAF (Royal Air Force) da Inglaterra abateu? dez bombardeiros nazistas.

Tudo isto é natural, pois a campanha estava repleta de referências sobre a Segunda Guerra Mundial, especialmente no campo que defende a ruptura com Bruxelas, cujo líder, Boris Johnson, ex-prefeito de Londres e biógrafo de Churchill, chegou a comparar a UE a Adolf Hitler.

? Ao contrário de outras nações europeias, saímos da guerra sem nenhum motivo de vergonha. Este país venceu o fascismo e combateu sozinho durante muito tempo. O ano de 1940 é fundamental no imaginário britânico. É nossa revolução francesa ? destacou Robert Colls, professor de História da Universidade De Monfort de Leicester.

Ao sair da guerra, explica Sunder Katwala, diretor do instituto de debates British Future, a ?Grã-Bretanha estava convencida de que ainda era parte do Top 3 e via o projeto europeu com certo desapego. Quando percebeu o erro pela crise do Canal de Suez nos anos 1950, o trem da UE já havia partido?.

Quando finalmente embarcou, em 1973, foi ?aos encontrões e muito tarde para moldar o bloco a seu gosto?, destaca Katwala.

? Os britânicos estão menos aferrados à ideia da Europa como projeto moral. Têm a tendência de considerar a UE como um mecanismo puramente econômico e comercial, exatamente como previu o general (Charles) De Gaulle. E se não os beneficia, ficam dispostos a sair ? afirmou o historiador Robert Tombs.

Além disso, ?ser uma ilha é parte central do debate?, sugere Sunder Katwala.

? Há muito euroceticismo na Europa, mas nenhum país se pergunta seriamente se faz parte da Europa. O Reino Unido, sim ? conclui.