Cotidiano

Daniel Pennac retrata evoluções físicas de um personagem, dos 12 anos até a sua morte

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RIO ? Hoje em dia é mais fácil falarmos de nossos problemas emocionais do que de nossos problemas físicos, acredita o escritor francês Daniel Pennac. Em ?Diário de um corpo?, seu mais novo lançamento no Brasil, o autor de sucessos como ?Diário de escola? (mais de 1 milhão de cópias vendidas na França) tenta devolver as questões corporais à pauta contemporânea. Não a carne superexposta das redes sociais, das capas de revista e das propagandas de TV, mas a das pequenas dores cotidianas, das necessidades fisiológicas básicas e dos prazeres íntimos ? todos esses sinais misteriosos emitidos por nossas carcaças.

O romance traça a vida de um homem pela sua evolução física, dos 12 anos até a sua morte, aos 87. Constrangido e marginalizado por sua frágil constituição, o personagem toma uma decisão drástica ainda na infância: nunca mais terá medo. Para isso, inicia a conquista do seu próprio corpo ? e registra detalhadamente o passo a passo dessa transformação em um diário.

? O conhecimento de nosso corpo permite uma desdramatização de inúmeras sensações ? argumenta Pennac, em entrevista ao GLOBO por e-mail. ? Com ele nós paramos de sofrer, acedemos ao conhecimento de nós mesmos. Em todos os domínios, o conhecimento vale mais do que a ignorância e a fantasia.

Nos mais de 70 anos contidos na narrativa, o que interessa é descrever dores e sentidos, como o toque sensual do vento na pele, o peso que a cabeça faz durante a leitura, o prazer de manipular uma meleca de nariz, a dificuldade de uma dança, mas também o medo da doença, da velhice e da morte. À primeira vista, essa introspecção anatômica parece insólita. Mas Pennac, um ex-professor de colégio, usa todo o poder de persuasão adquirido em anos de sala de aula para convencer o leitor da importância de seu assunto.

O livro é um manifesto contra o pudor físico, expondo com naturalidade tudo aquilo que a sociedade prefere esconder: fezes, orifícios, roncos, secreções… O tom é objetivo, neutro e natural, como se a única verdade do ser humano estivesse contida nesses detalhes. ?Quero escrever o diário do meu corpo porque todo mundo fala sobre outra coisa?, justifica o narrador em seu diário. Mas, se hoje o assunto virou tabu, Pennac recupera toda uma tradição perdida, na qual se encontram escritores como François Rabelais, o médico renascentista que associou escatologia e humanismo; e Michel de Montaigne, que em seus ensaios do século XVI soube escutar atentamente os mistérios do seu organismo.

? O corpo não lhes dava medo, é o mínimo que se pode dizer! ? diz Pennac. ? A grande noção de pudor aparece depois do romantismo, a partir do século XIX, com o casamento contratual das grandes fortunas. Silêncio financeiro e pudor físico parecem se associar. A relação do corpo muda radicalmente com o aparecimento da burguesia dos negócios, depois da física aventura napoleônica.

Questionado se, de tanto analisar a saúde de seu personagem, não acabou se tornando um pouco hipocondríaco, Pennac desconversa. A relação com o seu corpo, diz, é ?a mesma de qualquer pessoa?: quando tudo vai bem, esquece dele; quando algo começa a degringolar, busca a peça defeituosa; quando ele lhe dá prazer, ocupa todo o seu pensamento. A pesquisa para o livro, porém, foi além das suas próprias sensações:

? Observei as crianças que nasceram perto de mim, observei as pessoas, interroguei meus amigos médicos, escutei os velhinhos que acompanhei até o último sopro. É preciso amar o ser humano em todos os seus estados e, em seus últimos dias, acompanhá-lo com muita ternura. É preciso dar aos moribundos tanta ternura quanto a criança que acaba de nascer.

Um dos escritores contemporâneos mais conhecidos da França, Pennac tem diversos livros publicados no Brasil, incluindo os sucessos da Saga Malaussène, como ?A fada carabina?, ?Senhor Malaussène? e ?A pequena vendedora de prosa?. O autor morou por aqui entre 1979 e 1981, para acompanhar a mulher, que foi professora da Universidade Federal do Ceará. No Nordeste, encantou-se pela literatura de cordel, pelo flamboyanzinho (até hoje o seu arbusto preferido) e pelos livros de Jorge Amado e Euclides da Cunha, e não passava uma noite sem assistir a Sonia Braga em ?Gabriela?.

? Adorei esse imenso território de sol, de tragédia, de dignidade, de poesia e silêncio profundo. Nunca quis voltar porque a ideia de fazer turismo em um lugar de que eu tanto gostei não me agrada ? revela o autor, que se inspirou na temporada brasileira para escrever ?O ditador e a rede? (2003), sátira política situada no Piauí.

Mas é no bairro parisiense Belleville, cenário de todos os livros da ?Saga Malaussène?, que Pennac encontrou seu habitat natural ? uma área multicultural, boêmia e artística, conhecida por suas excentricidades. O escritor já disse que não gosta de lugares onde ?a gente só encontra lojas de roupa e fica com a impressão de estar cruzando consigo mesmo na rua?. Por isso mora há décadas em Belleville, apesar das constantes transformações do bairro.

? Hoje há cada vez menos artesãos, menos manufaturas. Mas continua um bairro onde todas as etnias se misturam e vivem sem conflito. Lá ouvimos todas as línguas, comemos todas as gastronomias e praticamos todas as religiões. É como um planeta em miniatura. É desse planeta que eu gosto.

?Diário de um corpo?

Daniel Pennac

Romance

Trad. Bernardo Ajzenberg;

Rocco; 336 pgs

R$ 49,50