Cotidiano

Crítica: 'Nada consta' é misto de memórias e livro de formação

Nada-Consta.jpgRIO – Em frente à entrada do Hotel Plaza, na orla de Copacabana, um carro branco de luxo estaciona. O vidro da janela de trás desce e o passageiro grita: ?E aí, bicho? Quanto tempo, João? Como vai??. O João é o grande compositor e arranjador João Donato. E o passageiro é ninguém menos que Roberto Carlos.

O Rei, então, convida Donato a entrar no carro. Ele está com um amigo, que embarca junto. Durante o trajeto até o bairro da Urca, onde mora, Roberto rememora o início de carreira no mesmo Hotel Plaza, ainda na fase bossa nova, quando o arranjador o ajudou, calando acusações de que não passava de um imitador de João Gilberto.

Chegam ao destino e o Rei os convida a entrar na casa. Tomam um elevador e, na cobertura, são recepcionados por um garçom. Donato pede um suco; o amigo, uma cerveja. A vista noturna é deslumbrante. Um piano de cauda e outros instrumentos povoam o terraço. De repente, Donato se aproxima das teclas. Roberto pega um violão e começa a dedilhar algumas notas. E, minutos depois, o amigo terá o privilégio de presenciar, a partir de um grande acaso, uma parceria que levou cinquenta anos para se repetir.

O amigo daquela noite é o jornalista Danilo Nuha, mais conhecido como Japa, que reúne essa e outras histórias incríveis em ?Nada consta?. Misto de coletânea de memórias e livro de (in)formação, a obra remonta a vida do menino criado por uma família adotiva, depois de ser abandonado num bar, que foi jornaleiro, operário, traficante de drogas no Japão, contrabandista na Indonésia, e, através do jornalismo e da boemia, tornou-se íntimo dos principais artistas contemporâneos brasileiros.

O ponto de partida é o ano de 2009, quando Nuha se muda para Copacabana. Aluga um quarto num sobrado no morro Pavão-Pavãozinho, e passa a trabalhar como vendedor de livros e discos no Beco das Garrafas, notório por ser o berço da bossa nova. Entre as constantes ?duras? dos PMs e o convívio com o tráfico pré-UPP, o pouco que ganha é diluído em bebedeiras ?dia sim, dia também? no lendário bar Bip Bip, onde circula pelas rodas de choro e de samba. Os acontecimentos desse cotidiano se alternam a capítulos que vão e voltam no tempo, transitando da infância no Mato Grosso do Sul, quando foi adotado e educado por um casal de japoneses, às temporadas na Terra do Sol Nascente. Os relatos de sua primeira passagem dão conta de três anos de exploração nas fábricas, ainda do uso de drogas e do preconceito por ser um ?dekassegui? (trabalhador estrangeiro), tendo de sabotar o próprio trabalho para recuperar o passaporte e voltar ao Brasil.

A segunda ida ao Japão seria oito anos depois, agora formado em jornalismo. Por meio de um concurso, Nuha ingressa num periódico direcionado à comunidade brasileira, no qual experimenta contatos com artistas em turnê, como é caso de João Donato (com quem cruzou de bicicleta a madrugada de Nagoya) e de Milton Nascimento. Ocorre que, por conta da foto de um pé de maconha em seu apartamento, é denunciado e perde o visto de jornalista. Daí, em conluio com um primo, inicia a carreira de ?bandido aspirante?, como diz, traficando metanfetamina e contrabandeando roupa falsificada na conexão Bali-Tóquio.

A passagem pela criminalidade acaba expondo um Japão sujo, miserável, bem distante do éden da modernidade e das revoluções tecnológicas. Assim como no catálogo da fauna carioca, com suas prostitutas, travestis e proxenetas, Nuha mapeia o comércio do sexo nipônico, dominado por bizarrices e depravações. São momentos em que as realidades dos países se empatam e o texto se contamina de um humor devasso, tal qual na história do sexo oral e o fixador de dentadura, e na ocasião em que o autor confrontou um sujeito entusiasta de rinhas de cães, sem saber que era sobrinho de um cruel bicheiro do Rio de Janeiro.

Seja pelo riso ou pelo drama, os relatos do Japa (amigo de Chico Buarque e de Caetano Veloso; que carrega uma fieira de desilusões amorosas e ressacas homéricas; que curtiu uma noitada com o rapper Criolo e um gringo cuja identidade, revelada num bilhete tardio, é tão inacreditável que parece mentira) contagiam por trepidar entre o real e o ficcional, a exposição e a reflexão. A certa altura, em meio a uma seção de imagens, o livro traz o fac-símile de um atestado de antecedentes criminais, do qual o autor se vangloria por conta do carimbo de ?Nada consta?. Diante de tudo o que passou, realmente não há como discordar de que está no lucro.

* Sérgio Tavares é escritor, autor de ?Queda da própria altura? (Confraria do Vento)

?Nada consta?

Autor: Danilo Nuha

Editora: Geração Editorial

Páginas: 168

Preço: R$ 34,90

Cotação: Bom