RIO – ?Logomaquia? (7Letras) é o nome do livro de Júlia Studart. Parece estranho um livro de poemas se chamar assim: logomaquia. Algo que pode ser traduzido como querela de palavras, combate de pensamentos. Contudo, poema, aqui, é algo concebido não apenas para ser olhado ou percebido pela sintaxe. Antes, é forma de discurso que se rebela contra cânones, torna-se armamento ou movimento de dança: qualquer coisa que se destine à conquista de nosso pedaço imaginário de chão, para dominar territórios, ?como Gêngis Khan/ ou Timur, o coxo,/ conquistar outra/ fração de espaço-tempo/ por entre tantas / quinquilharias.?
Quem sabe, uma utopia na escrita, quando as outras utopias desfalecem e até o gesto simples de orar acaba por se transformar em pantomima. Pois, no fundo, é do que trata uma poesia assim: erigir-se em canto do episódico para resgatar o sagrado, ou forma de combate para desmistificar o que nos querem impor como farsa. Daí o sentido da epígrafe tomada a Walter Benjamin: ?O fenômeno mais pequeno-burguês, a fofoca, só acontece porque as pessoas não querem ser mal-entendidas?. Eis, portanto, o propósito de uma poesia como a de ?Logomaquia?: dissecar pedaço a pedaço as vísceras do monstro social para recompor nosso convívio. Fazer de uma suposta arma de brinquedo o instrumento do assalto, pois nada aqui é despropositado ou meramente lúdico.
Então, observo esses textos de ?Logomaquia? um pouco como se estivéssemos a penetrar pelos tubos de um órgão tocando uma fuga de Bach. Ou a perceber o som metálico do arame no qual se equilibra o funâmbulo de Genet. Essa contradição entre som do atrito e da harmonia submetida às limitações da matéria é também a condição do olhar contemporâneo. O ruído do vento nas tubulações ou o vibrar dos pés no metal distendido compõem a poética do espetáculo nas suas múltiplas assimetrias. É assim: o que fere é o mesmo que conforta, o emparedado é o que nos liberta.
Inútil buscar por aqui filiação para essa poética comprometida com o desencalhar do cotidiano, a banhar no desembaraço dos ditos e a nos conduzir ao lugar do genuíno, que nos aproxima de Marianne Moore. O que se trata com irreverência tem o penhor de desvelar as contradições entre a ética e os encaminhamentos que a renegam: ?ilusões de distância/ e profundidade e/ nem a carta/ topográfica mais / detalhada que/ leva na mão como/ último trunfo pode/ salvar sua vida?.
O recurso ao coloquial, aos fragmentos, aos retalhos, cumpre os desígnios de uma atitude que pode ser observada em outros passos das artes, a exemplo da small dance do super-homem, o Übermensch, na busca de seu espaço justo, apertado, entre erro e glória. Porque ? do mesmo jeito que na dança ? esse é o limiar da poesia. Como, também, o da tauromaquia: ?espaço justo? pelo qual se imolaram Joselito el Gallo e o seu cunhado, Ignácio Sanchez Mejía ? o toureiro ?de las cinco en punto de la tarde?, do antológico llanto de García Lorca ?, possuídos pelo duende, mas que desprezaram o abismo. O mesmo abismo que separou dois poetas que Júlia Studart apelida de ?complementares?, brecha entre excesso de vida de um e escassez do outro, registrada no poema final, que dá título ao livro: o colombiano José Assunción Silva e o feliz tradutor de seu ?Noturno?, Manuel Bandeira.
No ?Dialeto dos fragmentos? há uma passagem de Schlegel, na qual ele afirma que todo autor legítimo escreve para ninguém, ou para todos. É assim ?Logomaquia?, uma poesia pensante que nos abre veredas para instigar nossa reflexão sobre o poder do poema nestes tempos de homens partidos, de homens perdidos.
Everardo Norões é escritor, autor de ?Entre moscas?, ganhador do Prêmio Portugal Telecom em 2014