RIO ? Pinturas corporais tribais afropop, os graves do reggae, o brilho quanto-mais-purpurina-melhor da disco music – num ano em que o Festival Back2Black foi condensado num dia, nada melhor do que uma atração principal como Grace Jones, síntese de várias vertentes da presença negra na cultura pop ao longo do século XX. Em seu show na Grande Sala da Cidade das Artes, na noite de sábado, entre o rigor de um espetáculo visual e musical de alto nível e a frouxidão de quem se divertia no palco como numa festa de amigos íntimos, a diva fez dançar o público que encheu o teatro.
Mais cedo, no caminho para o Back2Black, de quem vinha da Zona Norte, a cidade fervia por motivos diferentes. Um dia de intensos tiroteios na Cidade de Deus entre policiais e traficantes culminou com a queda de um helicóptero da PM (e a morte de seus quatro ocupantes) por volta de 19h30m, fazendo com que a Linha Amarela ficasse fechada por três horas nos dois sentidos ? o que talvez tenha justificado o atraso de cerca de uma hora na programação do festival.
Depois de um debate com artistas como Daúde, Deize Tigrona e Rico Dalasam no Teatro de Câmara, o Baiana System abriu a noite musical do evento. Com a excelência e os graves de costume, a banda mostrou seu “dubaiano” (dub+Bahia) em músicas como “Panela” e o clássico “Depois que o Ilê passar”. Caminhos abertos para a jamaicana Grace Jones.
Já nos primeiros segundos no palco, Grace afirma a força de sua imagem ? em torno do qual foi construída sua carreira. Sua pintura corporal ? que atesta a boa forma aos 68 anos ? é lida pela plateia brasileira a partir de referências que cruzam os impactos da Timbalada e da “mulher do fim do mundo” de Elza Soares.
Na verdade, o buraco pop é mais fundo: a arte faz referência à pintura que Keith Haring fez no corpo da artista, transformando-a numa divindade africana nascida no olho da exuberância da pop art.
É com a exuberância da pop art ? que deu a ela régua e compasso ? que Grace Jones conta sua história no palco. Ora usa crina e cauda, como uma leitura bem humorada de um unicórnio. Mais tarde, o chapéu coco com brilho que, sob o canhão laser, simula um globo espelhado. Bambolês, máscaras douradas, indumentária tribal feita de palha ? tudo sob o filtro de Warhol e Haring (e Madonna e Gaga, mestra e aprendiz).
Grace não conta sua história simplesmente expondo sua coleção de músicas antigas (um repertório que, para a alegria dos fãs, teve clássicos como “Nightclubbing”, “Private life” e “Slave to the rhythm”, na mão de uma boa banda, que imprimiu grooves que passeiam da disco music ao electropop, passando por reggae e new wave), mas uma história viva em seu comportamento e falas.
A personagem que marcou a noite novaiorquina está ali ? mais como resistência do que como pastiche, que ela também toca. Em sua performance, ela carrega o hedonismo da era que representa. Sexo e drogas atravessam a apresentação. Ela provoca a plateia sobre tirar a roupa e, quando os fãs reagem com empolgação, brinca: “minha buceta não é tão grande”. Comenta uma irritação no nariz dizendo que “não é cocaína, ainda”. Pede um baseado de um fã da fila do gargarejo. Se toca na região genital e nos mamilos. Leva um dançarino de pole dance ao palco.
Até que, perto do fim, vem o convite: “agora vamos para a igreja”. E ela faz uma “Amazing grace” enxuta, só sua voz ? e seu figurino, obviamente nunca enxuto. Beleza crua que ajuda a dar sentido à sinceridade chic-camp-junkie que Grace sustenta, e que a sustenta como artista.
Cotação: Bom