SÃO PAULO ? Atração de abertura da 4ª Mostra Internacional de Teatro de São Paulo, a MITsp, a peça-concerto “Avante, marche!” transformou o palco do Teatro Municipal, na terça-feira à noite, num espaço de celebração da música e do teatro como expressões humanas capazes de costurar e fortalecer laços afetivos e sociais. Links MITsp 2017
A montagem, codirigida pelos belgas Alain Platel e Frank Van Laecke, ainda será apresenta nesta quarta e na quinta, no mesmo palco. Criada em conjunto com o compositor Steven Prengels, “Avante, marche!” revela, em primeiro plano, a história de um músico que, diagnosticado com um câncer na garganta, se vê impossibilitado de tocar seu instrumento, o trombone. A partir daí, porém, o que se vê não é um drama ou sua tragédia pessoal, mas sim um tributo à vontade de viver, e sobretudo à prática musical como uma estratégia de sobrevivência nos dias de hoje.
Em algumas de suas últimas criações, como “Avante, marche!”, “Coup fatal” e “Tauberbach” é possível observar uma forte relação entre música, histórias pessoais e reflexões sobre as condições sociais e políticas da vida em comunidade. Como observa a importância e a relação desses elementos dentro do seu fazer teatral?
Sim, é verdade, existe uma relação entre essas obras e esses elementos, apesar de não ter sido algo proposital. E eu ainda não havia feito esse link… Mas há.
“Tauberbach”, por exemplo, nasce de uma investigação sobre uma brasileira, a Estamira, que vivia num aterro sanitário…
Sim, conheci a história e os pensamentos de “Estamira” através do documentário (de Marcos Prado), e a partir de um convite que recebi de uma atriz holandesa, começamos a trabalhar a partir desse material. Já “Coup fatal” nasceu como um projeto musical de Fabrizio Cassol. Ele havia se reunido com artistas e músicos congoleses para um trabalho em que eles executariam um repertório de música barroca. Fui assistir ao trabalho e depois começamos a pensar em como transformar aquilo numa performance.
Assim que cheguei ao Congo, em Kinshasa, para assistir aos trabalhos, comecei a pensar em relacionar aquela música com a vida pessoal de cada um, com as condições políticas e sociais do lugar em que eles vivem, então esse foi o desafio. Então sim, há essa relação entre música, vidas pessoais e condições políticas e sociais nas três obras, mas com resultados cênicos e sonoros bem diferentes.
Em “Avante, marche!” estamos diante de uma banda de metais, um tipo de formação musical que, assim como outros formatos, pode ser observada como uma espécie de “sociedade em miniatura”, como você diz, com sua hierarquia e suas relações afetivas. O que te interessava observar neste caso?
Após receber o diagnóstico de câncer terminal, o homem sabe que vai morrer, mas decide tocar até o fim, até o último suspiro.Bom, depois que eu e Frank criamos “Gardênia” (2010) levamos cinco anos até encontrarmos uma boa ideia e termos certeza de que tínhamos um ponto de partida relevante. E isso aconteceu quando nos deparamos com um livro de um fotógrafo belga composto por uma série de imagens de bandas como essa. É uma antiga tradição de muitas cidades, ter a sua banda de metais, a sua banda sinfônica, então começamos a visitar pequenas cidades, vilarejos e investigar a história dessas bandas, dos músicos, dessas pessoas que se reúnem para fazer música.
Há algum tempo tenho observado que algumas formas clássicas de reunião comunitária estão desaparecendo. As famílias, de algum modo, estão se quebrando, a igreja já não é um lugar de encontro como antes, os partidos políticos têm se desintegrado ou têm se tornado menos claros, e é cada vez menos possível distinguir uns dos outros… Todos esses aspectos sociais têm mudado rapidamente. Algumas velhas formas de vida comunitária têm se tornado bastante raras, e as brass bands se enquadram nessa história.
Visitamos lugares pequenos que tinham as suas bandas, e isso nos emocionou muito. Começamos a conhecer as histórias daqueles músicos… Muitos deles têm outros empregos. Eles não podem viver apenas de música, mas não podem viver sem música. Para eles é fundamental se encontrar duas vezes na semana para tocar juntos, sem qualquer ambição de se tornarem grandes músicos, ou músicos profissionais. A única intenção é tocar, é fazer boa música, e fortalecer os seus laços sociais, no fim das contas.
Foi muito bonito ver algumas dessas bandas compostas de diferentes gerações de uma mesma família, de vizinhos… É o açougueiro, o farmacêutico… Em vez de ir à igreja, eles se encontram para fazer música, e isso nos tocou muito.
O protagonista da peça é um trombonista que é levado a aposentar seu instrumento, mas faz de tudo para permanecer integrado à banda. Como chegaram a essa história, e o que ela nos revela sobre esse tipo de banda?
Para além da concepção e da realização musical da peça, nós tínhamos de achar uma história. E então pensamos nesse homem, mais velho, que recebe o diagnóstico de um câncer terminal, mas decide continuar tocando, mesmo que seja outro instrumento. Ele sabe que vai morrer, mas decide tocar até o fim, até o último suspiro. Então há a sua vontade de fazer arte, de permanecer integrado com os outros, assim como os outros músicos cuidando dele, brincando e tocando com ele, lidando sem desvios com o sofrimento e também com as alegrias.
Como a sua obra e o seu trabalho têm sido afetados pelo contexto social e político em que você vive, ou na Europa de um modo geral? Como o seu trabalho busca responder a questões sociais urgentes como, por exemplo, a xenofobia crescente, a crise migratória, o fortalecimento de movimentos da nova direita…
Me afeta muito. O meu mais recente trabalho, “Nicht schlafen”, traz uma relação direta com o que estamos vivendo, no mundo. Não é uma questão somente europeia, mas sim uma atmosfera geral, um mal-estar que é possível sentir em cada parte do mundo, sobretudo a partir do que está acontecendo agora nos Estados Unidos, que é algo que realmente afeta a vida de muita gente. Então se você me perguntar agora como eu imagino o futuro, a partir do presente, infelizmente vejo uma paisagem muito escura à frente.
Estamos marchando e avançando em direção ao abismo?
Sim, tenho visto coisas que me deixam muito preocupado. Acompanho as notícias, leio os programas dos políticos e não vejo nada de positivo se desenvolvendo nos patamares mais altos da política mundial.
Espero que essas outras formas se tornem cada vez mais acessíveis, claras e possíveis. Que estimulem novos movimentos políticos, mas tenho receio de que, no fim das contas, o “lado mau” vença. Mas essa é a minha perspectiva, de um homem com a minha idade, depois de ter vivido algumas décadas dessa história e acompanhar a repetição de alguns desses processos. Sinto, cada vez mais, que esse outro lado está avançando, vencendo… Isso deixa muita gente em estado de desespero.
E como isso tudo afeta a sua obra?
Acho que esse contexto nos obriga a sermos cada vez mais cuidadosos em relação ao que a gente faz e cria, em relação aos efeitos que causamos com nossas obras, o engajamento social que produzimos. Acho que o engajamento político precisa estar contido nos trabalhamos que criamos, ou ser uma resultante deles.
Nesse sentido, o que as cênicas podem oferecer de singular a partir de suas estratégias de relação com o público?
Essa é a pergunta mais difícil de todas. Não sei se consigo responder em nome da arte, mas só em meu nome. Tenho consciência do meu engajamento pessoal em diferentes níveis, e dentro dessa perspectiva pessoal me preocupo bastante, por exemplo, sobre como eu me relaciono e lido com o poder, com o dinheiro, com a economia e a ecologia. São preocupações pessoais minhas.
Num segundo nível, há o modo como o meu trabalho se relaciona com isso. E sinceramente acho que reunir pessoas diferentes num mesmo estúdio e tentar criar alguma forma de relação juntos, acho que isso é uma espécie de experimento social, são tentativas de criar utopias temporárias. É um lugar que nos permite observar como lidamos uns com os outros, e a partir daí pensar de que forma podemos trabalhar em conjunto, de um modo realmente democrático quando estamos criando, respeitando as diferenças, amparando uns aos outros e em busca de criar uma experiência potente.
Num terceiro nível, acho que a performance deve transmitir engajamento político mas não deve ser um panfleto político. Mas sim outra coisa, algo que deve mostrar como você imagina que pode ser uma sociedade, ou como você gostaria de viver nessa sociedade.
Mas se você me pergunta “A arte pode fazer alguma diferença?”, eu não sei como responder, mas sei que tenho que agir, apesar de ter a consciência de que a arte não pode, de fato, mudar o mundo.
Após mais de três décadas de criação, ainda é possível descobrir e aprender coisas novas? O que o anima a seguir criando?
Bom, hoje não sinto a pressão de fazer coisas por razões econômicas, e só me envolvo em trabalhos que realmente desejo participar. É claro que respondo também por uma companhia, e sei que as pessoas envolvidas precisam trabalhar. Mas o que quero dizer é que quanto mais tempo eu tenho nesse “negócio”, mas sinto que isso não é um “negócio”. É por isso que eu não faço “projetos”, para mim isso é realmente uma política de vida, uma forma de viver. Encontrar pessoas diferentes e tentar criar com elas utopias temporárias. Depois de tanto tempo fazendo isso, posso dizer que me sinto mais feliz hoje do que quando comecei.