Cotidiano

Cinema brasileiro é ?tratado como lixo? pelo circuito, diz Marco Ricca

Marco Ricca sabia o risco que corria com Mão de Luva, o bandido inspirado num criminoso real que interpreta em ?Liberdade, liberdade?. Assassino impiedoso, o personagem da novela das 23h da Globo, ambientada no período colonial do Brasil, carrega nas tintas. É um fugitivo que vive no meio do mato e veste roupas sujas, mas é vaidoso e está sempre ajeitando na cabeça uma peruca provavelmente roubada de um fidalgo. Vilão que usa uma luva preta na mão direita e fala com um carregado sotaque mineiro, ele se tornou um dos destaques da trama escrita por Mário Teixeira.

? Poderiam ter achado exagerado, existia um risco de aceitação, mas o Mão de Luva não está sendo visto como bandidão por parte do público. Muitos acham que ele mata por necessidade. A história se passa numa época de barbárie, em que as pessoas resolviam as questões na base do olho por olho. E não era minha ideia suavizar nada. Na primeira cena que li, ele batia na cara de uma pessoa e espirrava sangue ? recorda.

Ricca não economiza na maldade, mas tenta fazer de Mão de Luva um matuto ? o personagem anda para cima e para baixo com um cigarrinho de palha na mão, por exemplo.

? Quase não fiz tipos assim. Mesmo no cinema, a maioria dos meus personagens era mais naturalista.

Entre as características mais acentuadas de Mão de Luva, conta o ator, a voz e o sotaque surgiram naturalmente nos ensaios antes da estreia da novela.

? Eu não aguentava mais me ouvir, tenho uma voz muito reconhecível. Fui devagarinho criando o jeito dele. Há momentos em que erro, é muito difícil manter um sotaque por muito tempo ? reconhece.

Ator que estreou em novelas em 1993, com ?Renascer?, Ricca atuou em mais de 30 longas, passou 20 anos emendando peças no teatro, mas está há dois anos e meio longe dos palcos ? seu último espetáculo, ?Boca de ouro?, foi encenado em São Paulo. Ele diz que a saúde piora quando se afasta do teatro.

? Não falo só da saúde mental, é da física mesmo. Eu me preservo mais quando estou em cartaz, o teatro me deixa mais adestrado ? explica.

Na TV, ele foi visto recentemente na novela ?Boogie Oogie? (2014) e nos novos episódios da ?Escolinha do Professor Raimundo? (como Pedro Pedreira, vivido por Francisco Milani no humorístico original), no fim do ano passado.

Em ?Chatô?, 20 anos depois

Depois de já ter dito em entrevistas que os atores fazem mais novela por dinheiro, Ricca se explica:

? Todo mundo tem que se sustentar, a gente vive do salário. Mas eu gosto de fazer TV. Minha primeira novela tinha 210 capítulos. Se você passa seis meses num trabalho, mergulhado, é sensacional. Agora… um ano e meio é muito tempo. É difícil não perder o estímulo. Tiro o chapéu para quem faz novela longa e não perde o personagem nunca.

Aos 53 anos, ele diz não acreditar nesse papo que os 50 anos são os novos 40.

? Não adianta: 50 são 50! Mas foram todos anos bem vividos. A cabeça é que não chega aos 50, ainda é de 12. Acho que todo ator tem cabeça de 12 anos ? brinca, antes de emendar: ? Quando fiz 40 foi mais surpreendente. Os 50 saíram no xixi (risos).

A passagem do tempo pesa, diz, quando ele se vê nas novelas e séries reprisadas pelo Viva ou nos filmes que fez no passado.

? Isso não faz bem para a saúde (risos). Além de a gente se ver mais novo e falar ?nossa, como estou acabado?, lembra o que fez de ruim. Há uma frase, acho que do Miguel Falabella: ?Canal Brasil, quem deve teme!? (risos). Sempre está passando um filme que eu fiz.

No ano passado, o ator experimentou um fato inédito: estrear num longa que rodou há mais de 20 anos.

? Que loucura, né? ? diz, sobre ?Chatô: O rei do Brasil?, de Guilherme Fontes, filme em que encarnou o protagonista, Assis Chateaubriand. ? Teve uma hora em que todo mundo achou que o filme não fosse sair nunca mais. Depois de 20 anos eu nem lembrava direito o que tinha feito. Mas tive uma grata surpresa.

Ricca também esteve em cartaz no ano passado com ?O fim e os meios?, de Murilo Salles, filme que passou praticamente em branco pelo circuito.

? Foi uma tristeza, ficou duas semanas em cartaz ? lamenta.

O ator já produziu filmes, escreveu roteiros e acumulou todas essas funções quando dirigiu o longa ?Cabeça a prêmio? (2009). Ele diz que tem vontade de repetir a experiência, mas que é preciso repensar o modo como os filmes brasileiros são distribuídos no mercado.

? É muito difícil esse negócio da produção, distribuição… É talvez o monopólio mais cruel que existe no Brasil. Os caras têm o controle sobre tudo e todos. Nossos filmes (brasileiros) ficam em cartaz na menor sala, às vezes numa sessão só. Tratam a gente como lixo.

Desaparecimento do irmão

Ricca afirma que não se arrepende, mas reconhece que a experiência com seu filme foi ?muito dolorosa?.

? Fiquei quatro anos nele. Estava num momento legal como ator e tive que largar talvez os melhores personagens ? conta, não descartando dirigir séries para a TV.

Neste semestre, o ator será visto ainda em dois filmes inéditos no cinema, ?Canastra suja?, de Caio Sóh; e ?As duas Irenes?, primeiro longa de Fabio Meira. E roda no fim do ano o próximo filme da argentina Ana Katz.

Ricca é pai de Felipe, de 16 anos, do relacionamento com Adriana Esteves, e de Antônia, de 3, do atual casamento com a atriz Luli Miller. Mas não abre muito a intimidade, nem gosta de falar sobre o desaparecimento de seu irmão, o produtor Giuliano Ricca, durante uma viagem de carro de São Paulo ao Rio, no fim de 2014.

? É a tristeza da minha vida. Infelizmente, não sabemos de nada até hoje. Mas basta ouvir um barulho no portão para pensar nele. É angustiante ? diz. ? Vivemos num país em guerra e ela chegou perto da minha família. São 40 mil pessoas desaparecidas por ano no Brasil. É alarmante esse número. Somente 10% ou 20% voltam, e você fica sem ter como botar um ponto final nas coisas. Há um extermínio de pessoas que está sendo escondido. E ninguém tem uma resposta.

O ator recorda que estava no ar em ?Boogie Oogie? quando o irmão desapareceu. E diz que mergulhar no trabalho o ajudou a atravessar aquela fase.

? Havia a possibilidade de ser sequestro, e não falamos nada para ninguém num primeiro momento. Segui trabalhando, mas emagreci e fui minguando. Hoje estou com 80 quilos (ele mede 1,75m), mas na época cheguei a pesar 69 quilos. Daqui a pouco completam dois anos sem notícias, só apareceram denúncias falsas de gente oportunista querendo dinheiro.