Cotidiano

Christian Dunker analisa mal-estar social provocado por condomínios

PARATY – O Brasil é um pedaço de terra cercado por muros por
todos os lados. A proliferação dos condomínios ? físicos e simbólicos ? provocou
um tipo de sofrimento específico, afirma o psicanalista e professor titular do
Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo (USP) Christian Dunker. Autor do livro ?Mal-estar, sofrimento e
sintoma? (Boitempo),
lançado no ano passado, Dunker
identifica os condomínios, não só na sua forma clássica mas também o shopping
center e a prisão, como respostas à incapacidade da sociedade em lidar com a
diferença. Ele fala hoje, às 15h, na Tenda dos Autores, na mesa ?O show do eu?,
com Paula Sibilia,
professora do Departamento de Estudos Culturais e Mídia da Universidade Federal
Fluminense (UFF).

No seu livro, você fala sobre a organização da vida em
condomínios. Essa lógica seria uma resposta à dificuldade da sociedade em lidar
com a diferença?

A gente não conseguiu criar uma cultura que tornasse a diferença um valor.
Ela é percebida como um perigo, uma ameaça, um risco de identidade. Meu objetivo
foi localizar um sintoma social disso e escolhi o condomínio. O condomínio
brasileiro tem uma conformação que vem das capitanias hereditárias, tem uma
função de defesa. Os primeiros são construídos em São Paulo, em 1973, e se
espraiam para o resto do país, ligados por um mesmo tipo de financiamento e de
sócio ao shopping center. Condomínios e shoppings surgem a partir de um mesmo
momento e segundo uma lógica parecida. O condomínio tem o muro, uma estrutura ao
mesmo tempo simbólica e material, e tem um síndico, cuja função é
instrumentalizar a lei. A lei vale para todo mundo, mas no shopping há outra
lei. Seguranças privados, jeito de se vestir, de consumir. Tudo para criar uma
comunidade de iguais. Nós somos nós, os outros são eles.

E quais as consequências disso?

Você começa a criar uma mentalidade paranoica. O outro vira um bicho
potencialmente perigoso e isso gera um sofrimento característico. Você tem um
sentimento de apatia, irrelevância, o narcisismo das pequenas diferenças. Somos
todos iguais, mas sua caminhonete tem três faróis e a minha duas. O terceiro
farol adquire uma dimensão na sua vida que faz toda a diferença. Multiplica-se
esse tipo de pequena concorrência, de exibição, de um laço social baseado na
inveja.

De que forma essa ?condominização? extrapola para outras dimensões da
vida?

A gente chama isso de forma de vida, que é um jeito de você articular
linguagem, desejo e trabalho em torno de um mal-estar. Eu penso a forma de vida
a partir do sofrimento. Você organiza quem você é a partir das coisas que não
dão certo. O condomínio é uma forma de vida. Só que as formas de vida têm
início, meio e fim. Hoje há uma consciência clara, ascendente, de que o
condomínio é uma forma de vida envelhecida, que está sendo questionada. O jovem
quer morar no condomínio? Quer pegar 20 anos de sua vida futura, um
financiamento e ter uma casa igual às outras? Pode ser o Minha Casa, Minha Vida,
pode ser o Alphaville.
É um sonho que envelheceu. Os sintomas sociais estão ligados a um momento
histórico, a um tipo de conformação. Ele continua presente na sociedade, mas não
é mais um ideal como foi no passado.

Onde é possível identificar esses diferentes
condomínios?

A sorte do livro foi que a História ajudou. Na Lava-Jato, há uma espécie de mutualismo entre o
governo e a empresa, a demissão do Estado, a transferência do seu funcionamento
para um síndico. Esse síndico é o cara que administra o repasse de verbas, que é
o cara que produz e nem é propriamente político. É uma figura intermediária de
autoridade e de poder. Você tem dentro do Estado, condomínios. São figuras
difíceis de situar. São do público ou do privado? Uma forma de falar do
condomínio é que se trata de uma patologia da relação entre o público e o
privado. É disso que estamos tentando nos livrar. Há uma exaustão dessa maneira
de tratar a diferença. Então vamos para a rua, vamos inventar outra cidade,
outras formas de circulação. É todo um complexo de iniciativas que tentam tratar
essa lógica que constrói muros, cria síndicos, hipertrofia a lei e extrai um a
mais de sofrimento desse processo.

Os movimentos de contestação surgidos desde 2013 tem uma
característica territorial, de ocupação dos espaços. É uma resposta à lógica do
condomínio?

Durante muito tempo houve uma cooptação brutal do espaço
simbólico associado ao território. Posto essa relação de propriedade, que
extingue a experiência pública, a resposta é a ocupação. Vamos ocupar porque
aquilo não é nosso. O espaço pertence ao síndico, ao grupo que faz a sua
gerência. Não se está reclamando um retorno ao espaço público tal como era, mas
a invenção de outra maneira de ligar o território com o espaço. Tem um processo
decisivo que foi a mudança na nossa experiência de espaço simbólico que veio com
a vida digital. A internet permitiu a ocupação de espaços públicos, criou uma
nova geografia. E essa nova geografia forçou uma reconsideração do território.
Se isso é possível no mundo virtual, eu quero também uma redefinição no mundo
real, com o mesmo tipo de plasticidade.

A identidade é um elemento deste processo, não?

Se o condomínio, no fundo, é um sintoma da nossa
incapacidade em lidar com a diferença, ele foi encaminhado como um reforço da
identidade. A identidade protege a gente do sofrimento. Quando uma identidade é
posta em questionamento, ela tende a se reforçar. Se eu critico a sua
virilidade, que essa relação de gênero não está certa, sua resposta mais
imediata não é repensar a sua virilidade, mas afirmar que é muito mais macho do
que o outro pensa. Tudo para não se haver com o sofrimento, o mal-estar. Vivemos
uma nova geografia que torna a tensão entre identidades um fato novo. Não que o
preconceito e a opressão de classe, gênero e raça não existissem antes, mas você
tinha um tratamento para essas identidades que faziam com que o conflito não
fosse tão dramático.

Num debate na Flip,
escritoras negras questionaram a ausência de negros na programação. Essa é uma
crítica que não se via há tempos, cinco, dez anos.

Essa situação podia ser vivida como sofrimento pelos
escritores e escritoras negros, mas não era ali que o conflito podia ser
localizado. Agora é. Ainda vai ter um tempo em que o conflito entre identidades
vai ocupar muito mais espaço até uma reacomodação do espaço simbólico. Políticas
de identidade são estratégias, e não políticas no sentido mais forte, porque não
são universalistas. Até se equacionar a relação entre particulares em universal,
a tensão vai aparecer retinta de violência, ressentimento, em uma lógica entre o
restaurativo e o vingativo. Reivindicações também narcísicas, do nós e os
outros.

Nas lutas identitárias, observa-se também muitas divisões dentro
dos movimentos feministas, LGBT, negro etc, sobre quem pode participar ou não.
Por quê?

O projeto universalista cria uma pressão por alianças. Ele estabelece uma
gramática do tipo ?iguais até aqui, diferentes depois daqui?. Então, dentro
desta lógica, você vai constituindo uma política, alianças, inimigos,
adversários, e assim por diante. No Brasil, o que aconteceu foi que o PT, o
projeto mais ou menos de esquerda que dirigiu o país durante um tempo, fazia
essa função de universal. As esquerdas, mesmo que não concordassem, se
associavam porque, bom, temos algo que nos representa e isso é muito melhor do
que o outro lado. Só que esse universal foi desativado. Aí se dá a emergência
dos particulares que estavam suprimidos na aliança. Esses movimentos cresceram
nos anos do PT, a partir do reconhecimento do Estado, que foi se transformando
em leis, secretarias, políticas públicas. Mas quando você desativa o universal,
ressurge por um lado um sentimento de traição: ?eu abri mão de pautas e
retóricas, não disse coisas durante esse tempo porque estava renunciando em prol
de algo maior. Agora não vou abrir mão de nada. Vou colocar as pautas que me
definem dentro do grupo de identidade onde estou. Isso é um prato cheio para a
divisão da esquerda e para o progresso de lógicas particularistas, baseadas
apenas na expansão da mesma identidade. Isso é uma versão da lógica do
condomínio. É um nós. Fui fazer um acordo com a diferença e deu errado. Então,
agora não faço mais. É uma derrota de Pirro, um todos contra todos. E esse é um
discurso liberal. O mundo virou de ponta-cabeça.