RIO ? O que se passa com Grace Passô? Dentro da sua cabeça, do seu corpo? Geralmente perguntas como essas surgem como resultado de certo espanto quando se está diante das interpretações poderosas da atriz, como recentemente na peça ?Krum?, ou diante da qualidade de suas direções e textos teatrais ? muitos deles com prêmios para ela e para a companhia que ajudou a fundar em Minas, o Grupo Espanca!. Mas agora a pergunta ganha outro sentido. Ela diz respeito à origem e ao desenvolvimento de ?Vaga carne?, o primeiro solo de sua carreira. Afinal, o solo foi criado quando Grace imaginou uma voz errante que, capaz de invadir qualquer matéria sólida, líquida ou gasosa, resolve, certo dia, invadir o corpo de uma mulher, no caso, o seu… Ou não:
? É o meu corpo que está em cena, e é por esse corpo que essa voz passeia, mas existe uma personagem, um sujeito ficcional que tem o corpo invadido por essa voz, não sou eu exatamente ? diz Grave, que estreia o solo nesta terça-feira no Sesc Copacabana.
Interessa à autora ver atriz e personagem ?se confundirem um pouco?:
? Para mim, a principal personagem é essa voz, e o que interessa é ver o percurso que essa voz atravessa quando invade o meu corpo, o que ela encontra, descobre, sonda. A ideia é deixar meu corpo aberto para ser atravessado pela ficção criada por essa voz.
Uma voz que vaga pela carne de Grace Passô pela primeira vez. E, assim como na vida, vai do primeiro contato, superficial, que resvala em clichês e estereótipos, e ruma para as profundezas, vísceras e angústias que vibram no corpo e o fazem se mexer, escrever, atuar, falar e, por que não, se rebelar e ser, em si, uma espécie de levante coletivo num corpo só.
? O trabalho lida com certos estereótipos, mas o que investigo mesmo é o que resulta no estereótipo. É esse ato de olhar e julgar, responder de imediato ao que não se conhece. Como a gente julga um corpo que não conhece? É sobre o julgamento afoito do outro sobre os nossos corpos.
E, claro, sendo uma peça sobre o funcionamento desse pré-julgamento, ?Vaga carne? é, também, uma sondagem sobre preconceitos: raciais, sociais, sexuais e outros que dizem respeito não só a Grace, mas a muitas outras ?das grandes minorias? que existem no país.
? A peça não é sobre racismo, homofobia e o machismo brasileiro, mas ela é atravessada por essas questões.
Assim como a artista Grace, que diz fazer questão de manter seus textos ?sempre porosos ao que acontece dentro e fora de mim?. Se hoje, ao seu redor, ainda não se vê uma quantidade maior de artistas mulheres e negras assumindo o triplo papel de atriz, autora e diretora, Grace diz que isso é uma inegável evidência de preconceito ? o olhar cego que se desvia de enxergar a história, a vida e o corpo além da pele do negro brasileiro, e que o ?exclui da zona de visibilidade?, como diz.
? Se ainda não vemos uma quantidade representativa o bastante de mulheres negras sendo atrizes, autoras e diretoras, isso ocorre porque o Brasil é, sim, um país racista ? sentencia. ? As oportunidades para os criadores negros ainda são muito limitantes, e isso coloca possíveis criadoras negras longe dos holofotes. Mas isso está mudando. Já existe uma maior presença de criadoras negras não apenas no teatro, mas isso não ocorre por uma tomada de consciência do brasileiro, mas da tomada de posição e pela força de ação das mulheres negras e do movimento negro. Por causa das vozes que sondam e se levantam diante dessa realidade.
Além da voz de Grace, ?Vaga carne? é resultado do encontro dela com artistas de diferentes cantos do país, como Nadja Naira (iluminadora e atriz curitibana), Kenia Dias (professora e bailarina residente em São Paulo), Ricardo Alves Jr. (cineasta e diretor de teatro de Belo Horizonte), que coassinam a criação do solo com Grace, além de Nina Bittencourt, produtora do trabalho e coidealizadora do projeto ?Grãos da imagem?, do qual ?Vaga carne? é a primeira obra a ser apresentada. Além de modelarem a peça, as inquietações artísticas e políticas de Grace também serão representadas em dois outros trabalhos, o filme ?Praça Paris?, de Lúcia Murat, em que ela é uma das protagonistas, e a peça ?Preto?, que vem sendo desenvolvida pelo diretor Marcio Abreu e pela Cia. Brasileira de Teatro.
? Em meio ao desinteresse e à negação do racismo no Brasil, existem projetos como esses, que estão buscando mudar o nosso olhar e, também, a realidade do racismo no país ? diz. ? ?Preto? é mais um passo para compreender o que é e como se falar da negritude brasileira, buscando entender a relação que os brancos têm com o tema.
Responsável por apresentar, como curador do Festival de Curitiba, a estreia nacional de ?Vaga carne?, em abril passado, Marcio Abreu ressalta que o vínculo de Grace com o teatro por três diferentes vias ? atuação, escrita e direção ? resulta num modo singular de pensar e criar para a cena.
? É uma artista que afirma a singularidade, que tem uma voz própria, que aponta caminhos e que desestabiliza noções arraigadas ? diz o diretor de ?Krum? e ?Preto?. ? É um mulher, negra, mineira, atuante na sua cidade e no país. E em termos artísticos é, de fato, uma voz fundamental no teatro brasileiro contemporâneo.
Serviço ? ?Vaga carne?:
Onde: Sesc Copacabana ? Rua Domingos Ferreira, 160 (2547-0156).
Quando: Ter., qua. e qui., às 20h, até 25/8. Dias 26 e 27/8, às 19h, e dia 28/8, às 18h.
Quanto: R$ 20.
Classificação: 14 anos.