Cotidiano

Artista visual carioca cria livro a partir das memórias do pai

RIO ? Dias depois da morte do pai, que acontecera às 21h de 31 de dezembro de 2011, a artista visual Leila Danziger foi organizar seu apartamento. Lá, revirando documentos, abrindo gavetas e sendo observada o tempo todo por uma gata, descobriu que o silêncio habitual do velho imigrante alemão não era à toa ? ele falava pelos objetos que havia reunido ao longo dos seus 90 anos de vida.

Entre jornais velhos, contas pagas e manuais de eletrodomésticos, havia uma curiosa coleção de agendas em branco. Calendários de anos aleatórios como 1972, 1985, 1993; alguns em hebraico, outros em inglês; brochuras com mapas ou de bolso; cadernetas de toda sorte de organização de dias. Foi do desejo de preencher toda aquela existência em suspenso que surgiu o livro de poesias ?Ano novo?, que acaba de ser lançado pela editora 7Letras (não por acaso, na virada de 2016 para 2017).

? Meu pai morreu a poucas horas do réveillon. A desmontagem do apartamento sugeria um ano novo, ao mesmo tempo em que estava carregada de memórias de anos anteriores. Fiquei imaginando por que ele guardava agendas em branco, certificados de garantia de objetos que nem existiam mais. Ele era muito silencioso e, ali, quem falava eram os objetos. Era todo um imaginário de perdas e heranças ao meu redor ? conta Leila, que teve um dos poemas do livro antecipado pela coluna Risco, de Carlito Azevedo, no GLOBO, em dezembro de 2014.

Aos poucos, todo aquele referencial virou matéria: Leila começou a escrever excertos de crônicas, ora em forma de prosa, ora como versos soltos. Burilados pela autora por quatro anos, de 2012 a 2016, os textos tomaram corpo de poesias e foram divididos em três eixos temáticos: ?Economia?, sobre a desmontagem do apartamento do pai; ?Ano novo?, sobre as expectativas de futuro; e ?Irene e Martha?, com sugestões de interpretação de uma foto de família peculiar que guarda consigo (?A foto é um pedido/ sigo de braços dados com as duas mulheres/ sob o fundo infinito/de uma curva da cidade/ eu não havia nascido./ Visto seus vestidos de festa/ guardados no armário de minha mãe/ e brinco de avó de mim mesma?).

? Minha obra em geral fala dessa temporalidade. Talvez o ano novo do livro seja o ano novo possível em cada dia comum. No futuro escondido na memória dos objetos ? diz a artista, que também é professora do Instituto de Artes da Uerj e aos poucos se acostuma a ser chamada de ?poeta? (seu primeiro livro de poesias, ?Três ensaios de fala?, é de 2012).

Os 44 poemas que compõem o livro são ilustrados por uma série de 16 imagens de objetos construídos com páginas das agendas do pai misturadas a agendas de Leila, que vão da década de 1940 a 2016 ? obra visual que já esteve exposta em 2015 na Caixa Cultural com o título ?Todos os dias de nossas vidas?, e que será exibida neste ano na galeria Topographie de l?Art, no Marais, em Paris.

TRECHO

Desejo apenas o que há de mais inútil

em seus arquivos ?

certificados de garantia

de todos os eletrodomésticos

obsoletos

manual da Kombi de 1970

pocket books

(tantas capas de naufrágios)

dezenas de fitas magnéticas

com camadas de ruídos

em tempo longuíssimo.

Leio 30 anos de nossas vidas

em fichas de débitos

e créditos ?

estou ali, no centro

de seus mundos

em extinção.

Recolho promessas de sua língua

da infância ?

calcinações do solo perdido

e prospectos intactos na língua

renascida (alef-beit

incandescente).

Reviro blocos de décadas

cuja integridade

se rompe ao meu contato

e entendo ?

brinco de céu e inferno

com os objetos

sou o Além das coisas remotas

(…) Solto as páginas das agendas

libero os dias

embaralho semanas, meses, anos

modelo a massa do tempo que foi seu

? entre 1921 e 2011 ?

um intervalo colossal

de eternidade humana.

Misturo minhas agendas

às suas extensões

de branco sobre branco

e reservas de futuros

intactos

projetam-se

para além do fim dos tempos

que teve início

em trinta e um de dezembro

ou cinco de Tevet.

[Indiferente, a gata atravessa calendários

e adormece em maio de 1972.]