NOVA YORK ? A aparente pista falsa do título é proposital, avisa o diretor Matt Ross. Num
cenário dominado por filmes de super-heróis, a comédia dramática ?Capitão
Fantástico?, que chega hoje aos cinemas, não tem nada de ?Batman? ou ?Homem de
Ferro?. O indie é centrado na história de Ben (vivido por Viggo Mortensen), que
passou uma década com seus rebentos no mato, decidido a colocar em prática
ideais de comunhão com a natureza, exuberância atlética e desenvolvimento
intelectual. O tom lembra o de ?Pequena Miss Sunshine?, e o resultado é tão
comovente quanto angustiante. Os seis filhos sabem de cor a Constituição
americana, só comem o que plantam e caçam, discutem a obra de Noam Chomsky e têm
ritmo musical apuradíssimo. Mas penam quando, forçados por uma tragédia (a
doença terminal da mãe), precisam atravessar o país e entrar em contato com
jovens criados de forma convencional. Numa das cenas mais reveladoras, as
crianças se assustam com o número de pessoas obesas em uma típica cidade da
América Profunda. Em outra, o filho rebelde se maravilha com os confortos da
vida urbana e questiona Ben: ?mas o que há de tão errado assim em ser
normal??
? Pensei que este seria mais um filme baseado num super-herói obscuro de
histórias em quadrinhos ? confessa Viggo. ? Comecei a ler o roteiro desconfiado,
e achei que era a realização de uma utopia liberal, a família com valores
progressistas que enfrenta o mundo conservador com coragem. Segui adiante e vi
que era outra coisa, nada maniqueísta, pois aquele pai estava longe de ser
perfeito. Amei as nuances e a sofisticação da narrativa, com um só senão. Se o
filme fosse meu, acrescentaria, no título, como provocação, um ponto de
interrogação.
Indicado a prêmios de melhor ator pelo Globo de Ouro, pelo Sindicato dos
Atores, pelo Indie Spirit e pela Associação de Críticos Americanos, Viggo
|Mortensen, 58 anos, interpreta Ben com naturalidade ímpar. Como o personagem do
filme, que foi sensação no último Festival de Sundance, ele já viveu em estado
de isolamento da sociedade. Foi quando ainda não havia explodido em Hollywood e
se mantinha entre um e outro bico, nos cafundós do Idaho. Antes de começar as
filmagens, voltou ao cenário de seu período ermitão. De lá, viajou de carro até
o set no estado de Washington, dirigindo uma caminhonete repleta de livros,
ferramentas, utensílios domésticos, uma canoa, bicicletas e arremedos de móveis
que aparecem no filme. Também trouxe suas composições para serem incluídas na
trilha sonora e ajudou a plantar a horta usada para alimentar a trupe. O elenco
juvenil, afiado, também foi indicado na categoria de conjunto pelo Sindicato dos
Atores.
INQUIETAÇÕES COM PATERNIDADE
Por essas e outras, até o diretor e roteirista Matt Ross diz que seu segundo
longa-metragem é tão de Viggo quanto dele. Mais conhecido do público por seu
trabalho como ator coadjuvante, em produções como ?Psicopata americano? e ?O
aviador?, Ross estreou na direção em 2012, com o pouco visto ?28 hotel rooms?.
?Capitão Fantástico? surgiu de suas próprias inquietações com a paternidade. E
de seu encontro com Viggo.
? Executivos e produtores, quando se familiarizavam com o projeto, me diziam:
o Ben tem de ser feito por um ator cômico! ? conta ele, que venceu este ano o
prêmio de melhor direção da competição paralela do Festival de Cannes, Un
Certain Regard. ? Bati o pé e disse que o filme só funcionaria se o elenco
encarasse aquilo tudo com muita verdade. Sei que é difícil nos dias de hoje, mas
queria encontrar atores que de fato acreditassem na utopia de uma educação
libertadora, questionadora de nosso status quo. Pois Viggo é assim.
O ponto de interrogação no título proposto pelo ator vem imediatamente à
cabeça na cena em que o primogênito revela querer ir à faculdade, rompendo assim
o ciclo de afastamento da sociedade imposto pelos pais. Ao mesmo tempo em que se
debate contra a rigidez das regras do mundo lá fora, Ben impõe a seu clã um
dogmatismo às avessas.
? Ele dá tudo de si para as crianças serem cultas, safas, melhores pessoas do
que a média e do que ele próprio. Mas, ao mesmo tempo, ele as impede de
interagir com outras adolescentes e crianças, um erro gigantesco ? pondera
Viggo. ? Terminei esta jornada com a certeza de que o importante na criação de
nossos filhos é menos a busca da perfeição e mais o exercício diário de
compreensão de suas individualidades, em busca de um equilíbrio muitas vezes
pouco realista, mas sempre desejável.
Não deixa de ser curioso o fato de que o ator nova-iorquino descendente de
dinamarqueses, criado na Argentina e morador de Madri, só ter alcançado o
estrelato por conta de seu filho. Foi Henry, hoje ator e músico, então com 11
anos, maravilhado com a leitura da trilogia de J.R.R. Tolkien (1892-1973), quem
convenceu Viggo a fazer o teste para substituir o irlandês Stuart Townsend e
encarnar um certo Aragorn nas versões de ?O Senhor dos Anéis? para o cinema.
?NÃO SEI SE CONSEGUIRIA?
A franquia milionária de Peter Jackson abriu outras portas, como o papel
principal na adaptação do celebrado ?A estrada?, de Cormac McCarthy, e no
thriller ?Senhores do crime?, de David Cronenberg, com quem também fez ?Marcas
da violência?, e para o qual foi indicado ao Oscar de melhor ator.
? Não sei se conseguiria criar meu filho no meio do nada, sem celular, mas a
experiência de viver com jovens atores encarnando personagens de 7 a 18 anos,
por semanas a fio, nessas condições, foi fascinante, e me fez refletir sobre
minhas próprias escolhas profissionais e meu lugar no mundo das artes e do
entretenimento ? diz Viggo, também poeta, fotógrafo, pintor e editor
independente, uma profusão de talentos que lhe garante a alcunha, desta vez sem
interrogação alguma, de ?Capitão Fantástico?.