Cotidiano

Anne-Marie Autissier, socióloga: ?A cultura é o lugar do pensamento livre?

201609152041142539.jpg?Tenho 65 anos, estudei Literatura Comparada, mas fiz minha tese em Sociologia. Desde 2012, sou diretora do Instituto de Estudos Europeus da Universidade Paris VIII. No momento, desenvolvo uma pesquisa sobre a estratégia profissional de documentaristas no Rio e em Minas Gerais.?

Conte algo que não sei.

Em 2012, Antonio Manfredi, diretor do Museu de Arte Contemporânea de Casoria, perto de Nápoles, decidiu queimar obras da instituição para protestar contra o corte orçamentário na cultura. A primeira peça que destruiu foi a de uma francesa, Severine Bourguignon ? evidentemente com o consentimento da artista. Ele anunciou que queimaria três por semana. Para justificar a sua atitude, disse que as mil obras no acervo do museu já estariam mesmo destinadas à destruição, devido à indiferença do governo.

No Rio, chamaríamos a isso de ?factoide?, criar um fato para chamar a atenção.

Foi praticamente uma instalação, em se tratando de um museu de arte contemporânea. Mas, de fato, chamou atenção. As pessoas foram alertadas para a situação, e deu-se início a negociações.

Em momentos de crise, a cultura é sempre uma das primeiras áreas que têm o orçamento afetado.

Estudei a situação do corte de verbas em geral na Europa, mas me debrucei sobre quatro países: Hungria, Itália, Portugal e Reino Unido. A Hungria é um caso particular, porque o atual primeiro-ministro quer verdadeiramente mudar o país, para o que chama de nova cultura da direita. Ele tem suprimido as subvenções às artes, por motivos não necessariamente de orçamento. Mais por razões políticas.

A cultura é muito visada pelos políticos também pelo fato de ser um meio de as pessoas se expressarem, não?

A cultura é o espaço do pensamento livre. O lugar de um exercício crítico permanente sobre a sociedade. Não é o único. A universidade também é. É verdade que nas fases de crise aguda pode haver a tentação, por parte dos governos, de atacar a cultura. Vão dizer: ?Estamos aqui elaborando novas regras para o país, porque é assim que achamos que isso vai funcionar. Então, o pessoal da cultura não virá nos incomodar, nos impedir de fazer o que achamos que deve ser feito.?

Pode-se dizer que há uma identidade cultural europeia hoje? Já houve, em algum momento?

A questão da identidade europeia é muito complicada. Quando se olha para a Europa a partir do Brasil, ou da China, pode-se dizer que há uma identidade europeia. Isso passa pelo modo de vida, de maneira geral bem semelhante; do sistema político, bastante convergente ao longo do tempo e da História; de valores e da situação de igualdade, em que tanto os grandes países como os pequenos têm a mesma voz. Em relação à cultura, podemos dizer que há, sim, uma corrente artística europeia comum, como o barroco, a arte gótica, o romantismo, o cubismo, o expressionismo. Até mesmo a criação das universidades, surgidas como um espaço laico de debates, em contraponto ao monopólio da educação por parte da Igreja. Há movimentos que estiveram um pouco presentes por todos os lados da Europa, mesmo que não simultaneamente. Então, isso criou um sentido de cultura compartilhada.

Qual é o grande desafio da Europa hoje, culturalmente?

Pôr em xeque o movimento extremista, xenófobo, que é bem grande no continente. Ele se instalou na paisagem política, e não está lá por acaso. Reflete o medo das pessoas. Como as pessoas têm medo, votam assim, em nome de uma ?identidade francesa?. É preciso mudar esse cenário.