Cotidiano

A irmandade consanguínea

Tem gente que diz que a melhor coisa do mundo é ter um irmão. Irmão mesmo, esses como de antigamente, irmão de pai e de mãe ou que pelo menos tenham crescido juntos e em determinado momento da vida a ponto de se sentirem irmãos.

Ser irmão é mais do que dividir o quarto, compartilhar dos brinquedos, fugir da mãe que corre atrás com o chinelo na mão. Daquela vez foi demais, ele até admite. Quebrar a tevê jogando bola na sala já um pouco demais. Hoje quem ouve dá risada mas na época não foi tão fácil assim pagar as prestações. Coisa de irmão, é, de irmão, e fica fácil ver a beleza disso tudo quando o tempo passa ou quando não é a gente quem paga a conta.

Mas nem tudo são flores. O bicho pega, e muito, entre irmão. Às vezes vem um soco mas tapa é todo dia. E lá vem a mãe com o chinelo outra vez. Pegar a caneta de um irmão é assunto de morte para um enquanto o outro não está nem aí se vê seu guarda-roupa ser invadido.  Coisa de irmão. Ele gosta de azul, e pega as camisas, mas se pegar a namorado do irmão o bicho come.  "Essa não! Vi primeiro!" E ainda assim continua sendo coisa de irmão…

Irmão mais novo ouve irmão mais velho. O contrário também acontece. Irmã reclama do namorado para o irmão que diz o que ela deve ou não fazer. Irmãos tem dessas coisas. Irmãos envelhecem juntos, irmãos têm histórias, irmãos têm segredos….

Se tem pessoa no mundo que sabe como ficamos no enterro da mãe é nosso irmão, testemunha de todos os afetos, todos os tropeços, todas as chineladas e reconciliações. “Avisaram meu irmão?” Ainda não, deixamos para você. Afinal, é seu irmão, e irmãos sabem como lidar com irmãos.  E tem que falar com o pai, é, ele mesmo, o ultramen de 40 anos antes agora vai ter um troço. Tempo bom aquele, lembra, meu irmão? O pai mais jovem e sem dor nas costas que brincava com os irmãos, dois homens que se abraçam, se beijam, se consolam.  Homens que juntos dividem o peso de um caixão,  aquele que deixou um viúvo, aquele que leva a mãe dos irmãos, desta vez, porém,  sem o chinelo, acessório que há anos perdeu a serventia.

É, meu irmão. A mãe foi primeiro. E quem vai depois? Nessa decisão não tem tapa, não tem soco nem se tira a sorte no palitinho. A maturidade bateu à porta,  e não tem quem entenda mais essa coisa xarope que é ficar velho do que um irmão, o mesmo que já tem sinais da doença que anos antes levou embora sua mãe. "Cuida da minha família?" Sim, nem precisa pedir, você é meu irmão. E assim se fica sabendo quem é o sorteado que vai primeiro ao encontro da mãe.

Desta vez um velho solitário carrega a alça do féretro que leva seu melhor amigo, seu companheiro de uma vida inteira, fardo que só não é pior porque divide com outros dois irmãos, jovens sobrinhos consolados ao ouvir sobre o grande homem que foi seu pai, pessoa que, quem diria, brincou de cavalinho, fez seu próprio patinete e colocou minhocas na mesa da professora, histórias que não se perdem enquanto ainda houver irmãos para compartilhar.